Por tudo o que tenho lido na comunicação social sobre o tema escolhido para este artigo, sinto necessidade de deixar claros alguns pressupostos para evitar confusões. Primeiro: há pessoas cuja identidade de género não corresponde ao seu sexo à nascença. Não sei qual a origem desta situação (pelo que ouço de quem estuda estes processos com seriedade, ninguém sabe ao certo). Segundo: estas pessoas passam por processos de grande sofrimento, ansiedade e dificuldade. Terceiro: estas pessoas têm direito à sua identidade, têm de ser respeitadas e apoiadas, têm de poder viver em paz e estar integradas na sociedade em condições iguais a todos os outros. Quarto: a violência no namoro, a violência doméstica, a igualdade dos géneros, a homossexualidade e a homofobia são realidades distintas das questões da “autodeterminação da identidade e expressão de género” e é só esta última a questão que está em causa na Lei que se discute nestes dias.
Posto isto, vamos ao assunto que queria partilhar. No dia 7 de agosto foi publicada a Lei 38/2018, sobre Direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género, e à proteção das características sexuais de cada pessoa. Esta lei reconhece “o direito à autodeterminação da identidade de género” a “pessoas de nacionalidade portuguesa, maiores de idade e que não se mostrem interditas ou inabilitadas por anomalia psíquica” e estabelece o procedimento jurídico de mudança de menção do sexo no registo civil.
É uma lei que toca numa questão antropológica fundamental que tem sido objeto de reflexão e controvérsia ao longo dos séculos e continuará a sê-lo no futuro: quem é o Homem, o que o define, qual o sentido da sua existência, o que é uma boa vida. Esta questão não se limita às questões de género. Inclui outras como, por exemplo, as da identidade religiosa, cultural e, numa perspetiva mais futurista, as do cruzamento entre a biologia e a tecnologia. A Lei 38/2018 apenas toca a questão do reconhecimento civil do direito à autodeterminação do género mas ao tocá-la, evidentemente, deixa pressupostas todas as questões a montante que têm a ver com a determinação desse género (É inato? É adquirido? É binário ou um espectro? …). É uma lei socialmente polémica, aprovada com os votos a favor de todos os partidos de esquerda e contra de todos os partidos de direita e que foi objeto de um pedido de fiscalização da constitucionalidade quanto a um dos seus artigos. E isto é muito importante. O que está em causa para os deputados que promoveram este pedido ao Tribunal Constitucional é apenas 1 de entre os 19 artigos que a compõem.
No essencial, a Lei atribui a cidadãos maiores e autónomos o direito civil de autodeterminação da identidade de género. É um direito civil, individual. Nesta medida, a Lei parece não violar qualquer princípio constitucional, nem cria uma rutura no nosso ordenamento jurídico suscetível de criar uma clivagem social relevante para a sociedade como um todo. Tal não significa que a lei seja ideologicamente neutra. Não é. Corresponde à materialização de uma agenda social “progressista”, que tem defensores e oponentes. Mas assenta numa maioria política (que não necessariamente social) com total legitimidade para a aprovar. A Lei procura dar resposta aos anseios de um grupo de pessoas que sofre. Cria um direito para estes sem violar qualquer direito de outros.
Não se trata de saber se essa ideologia é “boa” ou “má”. Trata-se de defender um princípio basilar da nossa democracia: a supremacia da pessoa sobre o Estado.
O problema da Lei é que, numa opção que vai muito para além do seu objetivo central de atribuir um direito civil a cidadãos maiores e autónomos, estabelece no n.º 1 do artigo 12.º que o Governo deve criar medidas administrativas que “em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, […] promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas” (o sublinhado é meu). Aqui, a maioria na Assembleia da República que aprovou a Lei extravasou o limite do que é constitucional, criando uma situação de grave intromissão do Estado (através do Governo) em matéria que lhe está vedada: impor, através da educação, uma ideologia. O pressuposto de que o género é autodeterminado e todo um conjunto de consequências que alguns grupos daí retiram quanto á educação das crianças é uma ideologia. Não se trata agora de saber se essa ideologia é “boa” ou “má”. Trata-se de defender um princípio basilar da nossa democracia: o Estado não pode impor ideologias, sejam quais forem, através do sistema educativo. O Estado, em representação dos indivíduos que compõem uma sociedade, pode obrigar as famílias a pôr os seus filhos na escola. Pode até impor que as escolas ensinem os valores partilhados por essa sociedade e que a definem como comunidade (no nosso caso, os valores e princípios que têm consagração constitucional). Mas o Estado não pode ir para além disso. A Constituição é clara: “O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas” (n.º 2 do art. 43.º).
O n.º 1 do artigo 12.º da Lei 38/2018 é assim inaceitável por duas razões. Em primeiro lugar, impõe ao Governo a obrigação de adotar medidas que “promovam” o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género. Não se trata de “defender” ou “proteger” ninguém; trata-se de “promover” a autodeterminação da identidade de género no âmbito do sistema educativo, o que lhe está vedado. Ou seja, o Estado toma como oficial para ser ensinada nas escolas uma ideologia que entende que o género é uma construção social de que o indivíduo se pode/deve libertar. Em segundo lugar, este artigo prevê que esta promoção ideológica seja feita em todos os “níveis de ensino e ciclos de estudo”, o que inclui crianças e jovens dos 3 aos 18 anos (do pré-escolar ao final do ensino secundário). Ora, a própria lei que prevê que o exercício do direito de mudança de menção do sexo e nome próprio no registo civil depende da intervenção dos pais no caso dos menores entre os 16 e os 18. Isto porque, no caso de menores, a responsabilidade pela sua educação é dos pais (outro princípio constitucional – os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos – n.º 5 do art. 36.º). Não se percebe como pode ser legal a promoção de uma ideologia na escola sem o expresso e prévio consentimento dos pais.
A liberdade de educação no sentido da prioridade dos pais na escolha da educação dos seus filhos é um direito fundamental na Constituição Portuguesa, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Não é ilegal uma escola promover a ideologia de género. Não é ilegal uma escola promover o ateísmo militante. Não é ilegal uma escola repudiar a ideologia de género, nem é ilegal uma escola promover uma religião. O que é ilegal e inaceitável é estas opções serem ser tomadas e impostas pelo Estado. As opções ideológicas em educação só podem ser tomadas pela família.
Termino como comecei: isto não tem nada a ver com ensinar o respeito pelos outros e a não-descriminação; isto não tem nada a ver com o combate à violência no namoro ou a defesa da igualdade dos géneros; isto não tem nada a ver com a proteção devida e necessária às crianças e jovens que passam por processos difíceis de construção da sua identidade, ou dos jovens e adultos que têm uma identidade de género diferente do que é habitual. Quanto a estes temas, há muita gente de acordo e a defesa da pessoa precisa é de ação e não de legislação. O que está em causa no art. 12.º desta lei é uma intromissão inaceitável do Estado na esfera da liberdade ideológica dos Portugueses.
Em matéria de educação, muito mudou nesta legislatura. Fim dos exames, entrada das provas de aferição, lei da escola inclusiva, autonomia e flexibilidade curricular. Mas a questão do artigo 12.º da Lei 38/2018 vai para além dessa espuma dos tempos. O que está agora em causa é muito mais profundo e fundamental. É saber se teremos um Estado ao serviço da pessoa ou se atravessamos o Rubicão democrático e passamos a ser comandados ideologicamente pelo Estado.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.