1. O melhor do mundo são as crianças.
Mas há crianças que não vivem o melhor dos mundos.
Tenho várias destas histórias no meu passado profissional. E nos meus afetos.
Um deles chamava-se, e chama-se, Bruno.
«Sou o intervalo entre o que me foi dado por herança genética e empenho parental, entre o que eu desejo ser e o que os outros me fizeram, ou metade desse intervalo, porque também há vida…
Sou isso, enfim, fruto de um cravo e de uma rosa, criança por condição e nome próprio, agente e sujeito do meu próprio destino, moldado por uma Justiça dos Homens que quer ser minha amiga e confidente».
As modernas linhas orientadoras dos sistemas de proteção de crianças e jovens passam por três essenciais vectores (cfr. Gilbert, N., Parton, N., & Skivenes, M., 2011, baseado nas práticas em 10 países da OCDE de rendimento elevado):
- Orientação para a proteção da criança, como ser mais vulnerável na célula;
- Orientação para o apoio à família, como desejável suporte de vida da criança;
- Orientação centrada na criança – não o «cresce e aparece», mas o «aparece e cresce conosco», envolvendo a criança na decisão do seu próprio destino.
Para esse desiderato, o Estado Português tem feito opções, mais legislativas do que executivas, em abono da verdade, que têm passado pelo seguinte:
a) Monitorizar eticamente a infância;
b) Privilegiar o acolhimento familiar de crianças de tenra idade;
c) «Desfamiliarizar» as respostas para as crianças, reinventando as integrações familiares;
d) Dar um rumo terapêutico ao acolhimento residencial;
e) Apostar na formação de técnicos e profissionais na arte de bem ouvir uma criança.
2. As nossas leis vão querendo privilegiar o colo familiar relativamente a qualquer outro.
É da natureza humana a inevitabilidade da necessidade de vinculação segura.
A um outro.
A alguém que tem de ser capaz de amar e cuidar de uma criança como ela merece, de acordo com os cânones expostos nas Magnas Cartas da infância, todas iluminadas pelo espírito generoso e terno da Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela ONU em 1989 e logo ratificada pelo Estado Português no ano seguinte, fazendo, assim, e por isso, parte do cotejo de legislação que pode e deve ser diretamente aplicada a todas as crianças portuguesas ou residentes em Portugal.
Na promoção de direitos e na proteção da criança deve ser dada prevalência às medidas que a integram numa família – ou seja, na actual alínea h) do artigo 4º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP, doravante) já não se fala «na sua família», mas apenas em «família», seja ela qual for (dando-se aqui o primado de uma família em detrimento do acolhimento residencial).
O princípio da prevalência da família terá que ser entendido, não no sentido da afirmação da prevalência da família biológica a todo o custo, mas sim como o assinalar do direito sagrado da criança à família, seja ela a natural (se for possível, devendo, neste campo, o Estado ser capaz de acompanhar as famílias biológicas, ajudando-as a superar o perigo em que vivem as suas crianças), seja a adotiva, reconhecendo que é na família que a criança tem as ideais condições de crescimento e desenvolvimento e é aquela o centro primordial de desenvolvimento dos afetos.
O princípio da prevalência da família terá que ser entendido, não no sentido da afirmação da prevalência da família biológica a todo o custo, mas sim como o assinalar do direito sagrado da criança à família, seja ela a natural (se for possível, devendo, neste campo, o Estado ser capaz de acompanhar as famílias biológicas, ajudando-as a superar o perigo em que vivem as suas crianças), seja a adotiva, reconhecendo que é na família que a criança tem as ideais condições de crescimento e desenvolvimento e é aquela o centro primordial de desenvolvimento dos afetos.
De facto, nem sempre a biologia é sinónimo de vinculação.
O sangue não é uma sina para a vida.
E assim, por vezes, haverá que entregar uma criança ao laço adotivo, completamente similar ao biológico, a partir do momento em que existe uma sentença judicial constitutiva da providência tutelar cível em causa – a adoção (hoje só plena).
E quer numa quer noutra, os pais vão ter de ser adotados pelo filho que lhes foi entregue pela placenta ou por vontade soberana de um juiz – e, como diz Laborinho Lúcio, que bom seria que todos os filhos fossem adotados, até os biológicos!
Mas uma criança pode viajar para o colo de outras pessoas sem ser pela adoção – existem outros caminhos, menos radicais, que podem até coexistir com alguma parte do exercício das responsabilidades parentais ainda nas mãos da progenitura biológica.
E esses caminhos são trilhados pela legislação portuguesa – podemos estar a falar de limitações do exercício das responsabilidades parentais, de tutelas, de apadrinhamentos civis ou de medidas de promoção e proteção, estas à luz da LPCJP, datada de 1999, mas revista, em grande espectro, em 2003, 2015, 2017, 2018 e 2023.
O acolhimento familiar de crianças está previsto como uma das medidas protetivas aplicáveis pelas Comissões de Proteção e pelos Tribunais aquando da constatação de que uma criança está em perigo, lido sob a égide do artigo 3º, n.º 2 dessa lei.
E sabemos que este é um momento charneira neste país – a lei quer que as crianças até aos 6 anos vivam em famílias de acolhimento se tiverem de ser separadas de seus pais, de forma provisória, assim o ditando o n.º 4 do artigo 46º da LPCJP.
Temos lei, temos norma, queremos ação!
3. Para promover o acolhimento familiar, não é necessário diabolizar o acolhimento residencial.
Essa é ainda a única solução para algumas crianças em perigo do nosso sistema de promoção e proteção.
Sabemos que a não podemos exterminar.
Mas podemos e devemos melhorar o seu funcionamento.
Recordemos aqui as Orientações para cuidados alternativos de crianças – ONU 2010:
- O acolhimento residencial deve ser limitado a casos nos quais este contexto é especificamente apropriado, necessário e construtivo para a criança em causa e no seu melhor interesse.
- Os cuidados alternativos para crianças pequenas, especialmente até aos 3 anos, devem ser providenciados num contexto familiar (excepções podem ser feitas para evitar separar fratrias, e nos casos em que o acolhimento tem um carácter de urgência).
Há, pois, que evoluir de um acolhimento em modelo institucional para um modelo terapêutico, onde haja uma lógica de diversidade – quer-se uma transformação interna do jovem acolhido, acompanhando-o de forma mais pessoal e respeitando a sua individualidade.
Por isso, tem de haver um grande contexto afetivo na Casa de Acolhimento.
Aí entrados, as crianças entram numa nova etapa, a caminho de uma NOVA vida (essa é a META), recebem novos códigos de comportamento, iniciam ou reiniciam processos de socialização, de educação para a autonomia funcional e emocional, de formação e de escolarização (exigem-se parcerias íntimas com a Saúde e com a Escola), sentem saudades de casa (naturalíssima angústia da separação), enfrentam conflitos de lealdade e assumem culpabilidades na separação da família (sentem o acolhimento como castigo) – contudo, os seus problemas têm muito menos causas cognitivas e muito mais causas emocionais!
Estas crianças acolhidas em contexto residencial têm baixas expectativas socio-profissionais (tendem a pensar: «não tenho os mesmos direitos dos outros pois não tenho as mesmas capacidades») e, sobretudo, não têm necessariamente patologias de comportamento, ou melhor, hiperactividade com déficit de atenção, a carecer sempre de «Ritalinas» e quejandos fármacos.
Estas crianças acolhidas em contexto residencial têm baixas expectativas socio-profissionais (tendem a pensar: «não tenho os mesmos direitos dos outros pois não tenho as mesmas capacidades») e, sobretudo, não têm necessariamente patologias de comportamento, ou melhor, hiperactividade com déficit de atenção, a carecer sempre de «Ritalinas» e quejandos fármacos.
Na casa de acolhimento, há que PROVER os cuidados relacionais – deverá a casa de acolhimento estar atenta ao particular desenvolvimento da criança que acolhe.
Para isso, há que conhecer as fases desse desenvolvimento e as suas potenciais perturbações, há que escolher atividades educacionais promotoras desse desenvolvimento e há que individualizar tais cuidados, sabendo criar competências de observação de cada criança e planos de interação entre os cuidadores e aquela.
Os técnicos das casas de acolhimento – que devem ter com as crianças um envolvimento inteligente e comprometido – devem ter apoio emocional, supervisão institucional e formação contínua.
Já as crianças acolhidas devem ter apoio emocional e supervisão individualizada.
Ainda a tempo de as fazer passageiras de um desejável breve colo residencial.
4. E quando estes jovens saem do sistema de acolhimento?
Existem imensos desafios e constrangimentos à sua integração pessoal, social e laboral.
A sociedade está disposta a apoiá-los nesta sua caminhada corajosa fora dos muros contentores de um centro de acolhimento?
O estigma vai ou não acompanhá-los?
Podem querer esquecer o passado.
Mas o passado quererá esquecer-se deles?
Acredito piamente que o passado de cada criança não tem de determinar necessariamente o seu futuro.
Sei que o livro mais importante das nossas vidas é a página do nosso registo civil – mas o destino pode ser moldado à luz de uma sociedade integrada e solidária para com os que nascem no lado lunar.
Sei que o livro mais importante das nossas vidas é a página do nosso registo civil – mas o destino pode ser moldado à luz de uma sociedade integrada e solidária para com os que nascem no lado lunar.
Estes jovens que abandonam o acolhimento residencial precisam da nossa compreensão e do nosso fôlego redentor.
Porque toda a criança caminha sobre as águas.
Ela acredita no verde da água, na alma das coisas e das pessoas que não se servem dela para credos políticos. Quer estar na agenda dos políticos mas não a qualquer preço! E isto tem a ver com a dignidade da pessoa chamada CRIANÇA!
Temos todos de estar permanentemente acordados pois essa é a sua luz, aquela que ilumina os casarios e vigia as crianças portuguesas ou aqui residentes no seu sono.
O sistema tem a sua porção de Poder na mão, mesmo trabalhando com consensos e consentimentos bem expressos.
Mas não tenhamos ilusões – o Poder só é necessário para fazer o Mal.
E não esqueçam o principal – para fazer todo o resto, muitas vezes, basta o AMOR (um outro nome para o afecto, um valor jurídico constitucional em Portugal)!
Porque falar sobre a INFÂNCIA do Bruno e sobre as outras infâncias também pode – e é – um acto de AMOR, o mesmo que o Senhor Deus nos deu para ofertar sem saldos ou meias-palavras…
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.