Proponho que comece a leitura deste texto procurando responder à seguinte pergunta: como encaro a diversidade cultural? Procure ir além do “politicamente correto” ou da resposta que acharia que deveria dar… Aceito ou valorizo? Acolho ou hierarquizo? Sinto mais alegria ou receio? Sinto-me seguro ou perdido? E quando essa diversidade me confronta e põe em causa? Como reajo? Como defino fronteiras? Para os outros, para mim…
Começo com esta pequena provocação porque, nos últimos anos, esta pergunta – como encaro a diversidade cultural? – tem emergido como a pedra de toque das ações sobre diversidade e diálogo intercultural que dinamizo. Tenho-a proposto como ponto de reflexão essencial não só a nível pessoal, mas também grupal e até institucional. Mas não a proponho assim, diretamente, como o acabei de fazer aqui.
Primeiro, peço para que se identifiquem, no passado, momentos, grupos, movimentos, políticas que tenham tido como resultado uma maior inclusão ou, pelo contrário, o aumento da exclusão, dando a essa exclusão nomes: discriminação (legal ou social), segregação (espacial ou institucional), eliminação (cultural ou física). Invariavelmente, tem-se muito mais facilidade em identificar exemplos relacionados com exclusão, vários deles que poderemos denominar de exemplos de “exclusão absoluta”; em relação à inclusão, para além de uma maior dificuldade em identificar esses exemplos, eles são quase sempre identificados enquanto movimentos de resistência/libertação face a algum tipo de opressão/exclusão e, muitas vezes, expressam-se reticências, dada a sua incompletude – diria que em nenhuma das ações que dinamizei se identificaram exemplos de “inclusão absoluta”.
Depois de identificados esses exemplos, então, sim, questiono: que resposta dariam os ideólogos desses grupos, movimentos, políticas, etc., se lhes perguntassem “como é que encara a diversidade cultural?”. E os seus seguidores, dariam respostas semelhantes ou diferentes? Também aqui as respostas mais claras e seguras (e absolutas) surgem do lado dos exemplos de exclusão: “a diversidade cultural existe, mas claramente nós somos superiores”; “a diversidade cultural existe, mas é uma pena que algumas culturas sejam tão primitivas e inferiores”; “a diversidade cultural existe para que os grupos inferiores possam servir o(s) grupo(s) superior(es); “a diversidade cultural é claramente um erro e é nosso dever fazê-la desaparecer”;
…
Neste momento da discussão tem também emergido com cada vez mais sentido a necessidade de se falar do regime nazi alemão. Porque, em termos temporais, foi ontem. Porque, em termos espaciais, foi mesmo aqui ao lado. Porque o regime proliferou não num qualquer país pouco conhecido com baixos níveis de literacia e de acesso à educação, mas porque ganhou vida, força e tornou-se exterminador a partir dum país com um dos mais elevados níveis de literacia e escolarização. Porque foi um regime que percorreu o caminho completo da exclusão: discriminação, segregação, eliminação.
Infelizmente, a história repete-se. Os discursos (e as práticas) discriminatórias, xenófobas, racistas, violentas vêm crescendo um pouco por todo o lado e começam, passo a passo, a (re)conquistar lugares políticos, sociais e culturais fundamentais.
E dessas discussões, partilho três pontos sobre os quais urge falar.
O primeiro tem a ver com o desmistificar um determinado inconsciente coletivo de que os nazis seriam uma espécie de monstros que teriam aparecido naquele momento – parece quase ridículo escrito assim, mas a verdade é que é neste inconsciente que uma grande parte das pessoas arruma o desconforto da questão. Obviamente que tal não é verdade. Os alemães da época não eram monstros inconscientes. O regime nazi nunca teria tido a força que teve, a guerra nunca se teria concretizado, os campos de concentração e extermínio nunca teriam existido, se não fosse ter havido uma grande fatia de população – pais, mães, avós, avôs, trabalhadores e trabalhadoras, jovens – que aderiu e participou ativamente nesse esforço de conquista, violência e morte. As elites nazis não teriam sido nada sem o voto da população, sem a adesão do funcionário público, sem a força do agente da autoridade, sem a cumplicidade de quem trabalha, sem o silêncio dos que preferem olhar para o lado e não se importar, sem o acriticismo de quem escolhe não pensar. É claro que a questão é complexa e multifatorial, mas a verdade é que um grande número de pessoas (não assim tão diferentes de nós) aderiu ativamente, condescendeu ou se calou face a um regime que declaradamente se afirmava superior, xenófobo, discriminador e ultraviolento.
O segundo tem a ver com algo que pode ajudar a compreender o primeiro ponto (mas não o desculpa): o processo. O regime nazi quando subiu ao poder não declarou logo guerra e decidiu o extermínio de um conjunto de povos. Não, percorreu o caminho passo a passo. Começou (e continuou) com propaganda, muita propaganda, muita falsidade e mentira – e as pessoas deixaram-se enganar. Depois começou a produzir legislação discriminatória – e as pessoas deixaram passar. De seguida, começou a atuar de forma discriminatória, segregacionista e extorsionária, no seguimento do cumprimento da lei – e as pessoas deixaram continuar. Mais tarde, começou a marcar publicamente pessoas de determinada origem – e as pessoas apoiaram. Começou depois a prender, deportar e escravizar – e as pessoas colaboraram. Por fim, começou a exterminar – e as pessoas já não queriam saber…
O terceiro ponto tem a ver com a estupefação com que podemos ficar pelo facto de sinais tão fortes de discriminação, violência e desumanidade não terem sido suficientes para que na maioria da população alemã da época se acendessem vários sinais amarelos e vermelhos, alertas para a rejeição liminar de um regime assim, independentemente das manipulações, dos medos, das incompreensões, das frustrações, das insatisfações que acometeriam as pessoas – “não estou satisfeito, alguma coisa tem de mudar, mas assim tenho a certeza que não!”. Se um número significativo de alemães tivesse pensado assim, a história seria outra…
Infelizmente, a história repete-se. Os discursos (e as práticas) discriminatórias, xenófobas, racistas, violentas vêm crescendo um pouco por todo o lado e começam, passo a passo, a (re)conquistar lugares políticos, sociais e culturais fundamentais. Nesta altura, diria que uma das maiores virtudes da educação será ajudar as pessoas a tomarem consciência desta realidade, do seu quadro ético, da importância do seu papel e das consequências das suas opções. Para que agora, ao contrário do passado, possa erguer-se uma maioria clara de pessoas que diga “é preciso mudar, mas assim tenho a certeza que não!”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.