Durante a peregrinação em pobreza (prova essencial do Noviciado da Companhia de Jesus), sempre que o Francisco Montellano, sj e eu passávamos por um cemitério, dizíamos, juntamente com o salmista, «é preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus fiéis». A certa altura e em tom de brincadeira, estendemos esta pequena oração a toda e qualquer contradição que se nos deparava, certos de que, em cada “não”, encontrávamos uma pequena prova da morte a nós próprios. Se não nos acolhiam em suas casas, «é preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus fiéis»; se não nos davam algo para comer, «é preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus fiéis»; se estávamos cansados, «é preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus fiéis». Ao ponto que, quando eramos confortavelmente acolhidos por alguém, esta pequena frase do Salmo 116 também era invocada, quase que por hábito embutido na nossa boca.
Certo dia, fomos acolhidos pela última pessoa que esperávamos que nos acolhesse em sua casa. Uma pessoa que, como viemos a descobrir, era anticlerical, anti-Igreja, anti-muita coisa. Contudo, não era anti-amor, anti-compaixão, ou anti-acolhimento de estranhos em sua casa. Foi na casa do Joaquim que o salmo se soltou da minha boca mais livremente e com uma compunção interior que, até àquele momento, ainda não tinha encontrado na peregrinação. Afinal, no acolhimento de alguém a quem roguei pragas por ser anti-tanta coisa e de quem criei tantos preconceitos, percebi finalmente que a «morte dos seus fiéis» começa muito antes do final da vida.
Se a Companhia de Jesus lhe chama peregrinação em pobreza, não será tanto porque partimos sem dinheiro, à mercê da boa-vontade das pessoas ou, como também a Companhia lhe gosta de chamar: “Providência Divina”. Parece-me tratar-se mais de uma peregrinação em busca da pobreza interior – a pobreza de quem descobre que nada pode sem a dependência de um outro. E, mal sabíamos nós (Francisco e eu) que, ao iniciarmos esta brincadeira de recitarmos a frase do salmo, estávamos na verdade a ser iniciados na busca da pobreza de Jesus que nos convida a aprender a morrer, hoje!
Há uns tempos escrevi um artigo que sublinhava a importância da “construção de um imaginário coletivo”, no que diz respeito à morte. Hoje, escrevo porque me impele um desejo de que este imaginário seja construído desde já e eu não posso ficar alheio a essa necessidade.
Uma antiga tradição medieval, intitulada Ars moriendi – isto é, “a arte de morrer” – já contemplava a máxima de que “morremos como vivemos”, pelo que, para uma boa morte é importante cultivar uma boa vida. Uma vida repleta de pequenas mortes espirituais, psicológicas, relacionais, que acompanhem a única morte que não depende de nós – a morte física e biológica.
Ora, uma antiga tradição medieval, intitulada Ars moriendi – isto é, “a arte de morrer” – já contemplava a máxima de que “morremos como vivemos”, pelo que, para uma boa morte é importante cultivar uma boa vida. Uma vida repleta de pequenas mortes espirituais, psicológicas, relacionais, que acompanhem a única morte que não depende de nós – a morte física e biológica. Se é certo que morremos, parece-me cada vez mais certo que é necessário que a morte do nosso corpo seja acompanhada por uma lenta e profunda morte ao nosso «próprio amor, querer e interesse» [EE 189]. Por outras palavras, o corpo grita-nos uma verdade muito crua: haveremos de definhar e morrer. E não podemos separar a experiência biológica da experiência espiritual e psicológica: nós, que morremos diariamente, somos chamados a morrer de facto. Sempre e em tudo.
O que é a morte? Não sei… Mas sei que não conheço, não controlo e que, no limite, fecharei os olhos para uma presumível escuridão (quando comparada com a luz do mundo que conheço e que percorro). O que nos resta senão treinar-nos no abandono e na confiança? Esta é a pobreza a que a morte nos convida – a pobreza do descontrolo e do desconhecido; no fundo, a pobreza de reconhecer que não nos bastamos a nós próprios. E esta é a riqueza a que a vida nos desafia – morrer à tentação do controlo, ao fechamento naquilo que conhecemos e às certezas absolutas e aparentemente luminosas. A ponto de, na hora da nossa morte, não haver tentação de controlar o incontrolável, medo diante do desconhecido, desespero diante a escuridão.
O que nos resta senão treinar-nos no abandono e na confiança? Esta é a pobreza a que a morte nos convida – a pobreza do descontrolo e do desconhecido; no fundo, a pobreza de reconhecer que não nos bastamos a nós próprios.
Por isso, o imaginário coletivo que se vai construindo assemelha-se a um caminho, feito em busca da pobreza da morte. Um caminho em que somos surpreendidos pela bondade e generosidade de muitos Joaquins, não pelo que nos dão, mas pelo que nos mostram sobre a morte ao nosso próprio amor, querer e interesse; a morte ao nosso controlo, ao nosso conhecido e às nossas certezas e preconceitos, ao ego que teimamos em fabricar. Talvez, confiados e abandonados à certeza de que o “amor e graça nos bastam”, podemos ir-nos libertando de nós próprios e alongar-nos na leitura e oração do salmo:
Volta, minha alma, ao teu repouso,
porque o Senhor foi bom para contigo.
Ele livrou da morte a minha vida,
das lágrimas, os meus olhos,
da queda, os meus pés.
Andarei na presença do Senhor,
no mundo dos vivos.
(…)
É preciosa aos olhos do Senhor
a morte dos seus fiéis. (Sl 116, 7-9.15)
Com certeza que o Senhor não nos há de livrar da morte biológica. Essa há-de ir, e não há nada que possamos fazer contra isso. Por isso, a cegueira, a certeza e o controlo são “a morte da qual o Senhor livra a minha vida”. Mas é preciso estar aberto a esta salvação. É preciso que nos disponhamos a morrer a nós mesmos, para que seja o Senhor a conduzir-nos por uma boa vida que nos levará a uma boa morte. Um dia, a alma voltará ao seu repouso, serena e tranquilamente, pois foi morrendo desde a sua juventude a si mesma. Confiante na ressurreição dos mortos, a alma alegrar-se-á porque, afinal, o descontrolo, o desconhecido e a presumível escuridão não serão mais que «a presença do Senhor» e «o mundo dos vivos» que nós haveremos de percorrer e contemplar.
A fé cristã e, consequentemente, a fé na ressurreição não são meros ópios que nos dão uma esperança calorosa de que, no fim, “vai ficar tudo bem”. São um convite a seguir Jesus hoje, na terra. Um seguimento do seu estilo Pascal – contínua morte e ressurreição de nós próprios, em que, na confissão da nossa dependência e vulnerabilidade, nos abre aos outros e aos gestos concretos do amor – tendo-nos como objeto e agente desse amor ao estilo de Jesus. A morte (final) joga-se agora. Não a adiemos, não a negligenciemos, nem a empurremos para debaixo do tapete até ao dia em que ela se há de impor. Interessa preparar a sua vinda hoje, porque é hoje que ela vai vindo, lenta e profundamente.
A morte que é preciosa aos olhos do Senhor é, sobretudo, a morte quotidiana a nós mesmos. Uma morte lenta que nos liberta daquilo que nos impede de amar livremente. Trazer o horizonte da morte (biológica) para os dias de hoje, falar abertamente da morte, convidá-la a sentar-se à nossa mesa, desdramatizá-la, pode ajudar-nos a construir o imaginário deste caminho, no qual somos convidados à pobreza da morte a nós próprios, para que deixemos os outros encherem-nos com a sua riqueza e, ultimamente, deixarmos Deus ser Deus. Ele que, pela encarnação, «sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8, 9). Ele que é o Amor e Graça bastantes para o abandono à vida verdadeira, uma vida eutanasiante, ou seja, que nos encaminha para uma boa morte.
Por isso, resta-nos perguntar: o que é que em mim, hoje, tem de morrer, ou ir morrendo?
Porque, afinal de contas, como reza S. Teresa de Ávila, «morro porque não morro».
Ouça aqui a oração de S. Teresa de Ávila por Francisco Montellano, sj:
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