O Dia Mundial da Água foi instituído pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 1993, tendo escolhido para esse efeito o dia 22 de Março. A problemática das “mudanças climáticas”, acentuada por este inverno extremamente seco, confere outra acuidade a esta celebração.
S. Francisco de Assis (1181-1226) integra a irmã água no coro do “Cântico das Criaturas” que louvam continuamente o Criador: “Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã água que é tão útil, e humilde, e preciosa e casta.” A partir da comunhão profunda com Deus, abre-se a Francisco um novo horizonte, que lhe permite dizer tudo, em tão poucas palavras, numa linguagem acessível a todos, referindo as características essenciais da água às quais poderás estar cego. Para Daniel Faria, (1971-1999) a água é puro dom divino e, consequentemente, a sede é essencial/estruturante/constitutiva do ser humano::
Aos meus amigos nunca pedi mais
Que um copo de água
Sobre a mesa
E tudo o que me deram foi
Seus lábios cheios de sede
Por isso minha vida
É
E lhes sou grato
Também o Papa Francisco na encíclica Laudato Si’ (LS), dedica uma secção à questão da água (§ 27-31). A encíclica sublinha que “o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos” (§ 30). Alerta ainda que “os impactos ambientais poderiam afetar milhares de milhões de pessoas, sendo previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme numa das principais fontes de conflitos deste século” (§ 31).
Uma autêntica “conversão ecológica” (LS § 2016-221) pode levar-te a fazer a seguinte pergunta: “Que hei-de fazer, Senhor?” (At 22, 10).
Uma série de flashes vêm-me instantaneamente à mente, representativos de diferentes momentos da minha história. Nasci em 1960. Em criança, o sábado era o dia do banho semanal. Ainda pequeno, aprendi a entrar num café para pedir “um copo de água, por favor” e a agradecer no final. Quando jovem, parte das férias de verão eram passadas no Parque Nacional da Peneda-Gerês onde as águas frias e transparentes que corriam e caíam em cascata da montanha sobre leito rochoso iam escavando, ao longo de muitos anos, marmitas de gigante. Bastante mais tarde, em 1997-98, no Negaje (Angola), o duche de madrugada limitava-se apenas a meio balde de água com um púcaro. Em 2006, o goês que ficou hospedado lá em casa, à chegada foi acolhido por mim e perguntou-me num português fluente: “a água da torneira é boa?” Quantas vezes, também em pequeno, tinha feito a mesma pergunta?!
Uma autêntica “conversão ecológica” (LS § 2016-221) pode levar-te a fazer a seguinte pergunta: “Que hei-de fazer, Senhor?” (At 22, 10). É uma pergunta recorrente em S. Lucas e que testemunha a transformação interior, fruto de um verdadeiro encontro com o Ressuscitado. Viver da comunhão com Cristo em que é que se traduz, na tua vida? A resposta terá de partir de ti. Quem sabe, poderá passar pelo cuidado em acumular num balde a primeira água do duche, que sai fria, e pode desempenhar perfeitamente as funções do autoclismo ou, então, ser usada para regar as plantas de interior ou do jardim. Eventualmente poderás também cortar com a rotina e obrigação do duche diário para passar a fazê-lo duas a três vezes por semana. O Papa insiste em pequenas ações diárias em prol do ambiente (LS § 211-212, 230-231). “É muito nobre assumir o dever de cuidar da criação com pequenas ações diárias, e é maravilhoso que a educação seja capaz de motivar para elas, até dar forma a um estilo de vida” (LS § 211). Inácio de Loiola (1491-1556), mediante o “exame particular” (Exercícios Espirituais 24-31), fornece-te um instrumento poderoso para consolidardes a tua conversão ecológica.
Israel tem um clima semidesértico pelo que a água constitui para os seus habitantes um bem precioso: “E quem der de beber a um destes pequeninos, ainda que seja somente um copo de água fresca, por ser meu discípulo, em verdade vos digo: não perderá a sua recompensa.” (Mt 10, 42). Um simples copo de água que venhas a oferecer a alguém, por causa de Jesus, confere uma outra plenitude à tua existência.
Um simples copo de água que venhas a oferecer a alguém, por causa de Jesus, confere uma outra plenitude à tua existência.
A água que ingeres ou na qual te lavas, arrasta as impurezas a nível interior ou exterior. Contudo, há uma outra água, que o próprio Jesus te dá, que nasce da tua interioridade e te vai comunicando uma plenitude crescente: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba: do coração daquele que acredita em mim correrão rios de água viva para a vida eterna. Referia-se ao Espírito…” (Jo 7, 37-39).
É muito significativo o documento publicado em 30 de março de 2020 pelo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, intitulado Aqua fons vitae. Orientações sobre a água, símbolo do choro dos pobres e do choro da terra. Esquematicamente, o documento começa por reconhecer diferentes tipos de valores associados à água: 1. valor religioso; 2. valor sociocultural e estético; 3. valor institucional e valor útil para a paz; 4. valor económico. Muitos destes valores caíram no esquecimento das nossas mentes utilitaristas e reivindicativas que perderam, também, a capacidade de se maravilhar.
Destes valores seguem-se três grandes dimensões da água: 1. a água para o uso humano; 2. a água e as atividades humanas; e, finalmente 3. a água como espaço. “A Bíblia tem 1500 versículos nos quais se fala da água” (Aqua fons vitae).
O documento conclui com um secção intitulada “Educação e Integridade”, acentuando por um lado a necessidade de uma “educação para um novo humanismo e para uma cultura do encontro e de colaboração sobre a água” e, por outro, a necessidade da “luta contra a corrupção e contra a violência sobre a água”. O documento advoga “uma educação mais aberta e inclusiva, capaz de uma escuta paciente, de diálogo construtivo e de mútua compreensão” (§ 103).
Simbolizada pela água corrente, esta kenosis/abaixamento caracteriza o verdadeiro discípulo de Jesus Cristo.
Realmente, a água é a fonte da vida! Consequentemente, o grito dos pobres e o grito da terra, implorando por água, chegou até Deus (Ex 3, 7). A paixão de Cristo vai-se impondo e ganhando contornos universais, mesmo para aqueles que no seu hedonismo e indiferença a pretendem negar.
A cerca de dois quilómetros de Manresa, Inácio sentou-se voltado para o rio que corria fundo na paisagem e profundo dentro de si mesmo! Foi neste cenário que recebeu a graça da iluminação, a mais marcante de toda a sua vida. Esse momento transformou-o num Homem Novo (Autobiografia).
Na obra emblemática de Inácio de Loiola, os Exercícios Espirituais (EE), o termo “água” é empregue em mistérios significativos da vida de Jesus, nomeadamente: 1. as bodas de Caná, em que Jesus faz o primeiro milagre convertendo a água em vinho (Jo 2); 2. Jesus caminha sobre o mar de Tiberíades ao encontro dos discípulos (Mt 14); 3. o lado de Jesus crucificado é trespassado por uma lança, jorrando sangue e água (Jo 19).
Os EE terminam com a “Contemplação para alcançar amor” (EE 230-237), correspondente ao Pentecostes na tua vida quotidiana. Mais precisamente Inácio conclui com a imagem das águas que descem da fonte (EE 237). O Espírito Santo é o dom por excelência que vindo do alto desce sempre mais fundo como as águas que correm da fonte. Acolhe esta água viva, o próprio Espírito Santo, e poderás ser sucessivamente força, justiça, bondade, piedade e misericórdia de Deus no meio do mundo (EE 237). Simbolizada pela água corrente, esta kenosis/abaixamento caracteriza o verdadeiro discípulo de Jesus Cristo.
Na sua extrema discrição, a água em sentido literal ou, então, a água como imagem do Espírito Santo, especialmente presente na Igreja e nos seus membros, é condição sine qua non para que o mundo tenha vida e vida em abundância (Jo 10, 18).
Fotografia de: Kate Joie – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.