Nesta mesma semana, dois jesuítas portugueses em formação iam a caminho do final do semestre, desde Paris e Roma, estando cada um, respetivamente, a 1400 e 1800 quilómetros de Portugal; conversavam entre si sobre tudo o que acontecera.
Aquilo que seria uma conversa de 30 minutos para preparar um eventual artigo para o Ponto SJ em reação aos resultados das eleições legislativas, acabou por ser uma bela conversa entre dois escolásticos jesuítas: o Vicente a estudar Filosofia em Roma e o Afonso a estudar Teologia em Paris. Além do interesse em política e as saudades da nossa Província, temos em comum a formação em Economia, prévia à entrada na Companhia de Jesus, e a participação, embora a diferentes níveis, no movimento Economia de Francisco.
Estando em duas fases de formação diferentes, começámos por saber como estávamos, como têm corrido os estudos, esta fase final do ano e os projetos de interesse académico para o futuro. Em duas capitais europeias centrais no percurso de Santo Inácio e no atual itinerário de formação na Companhia de Jesus, falámos também sobre a herança do Papa Francisco e as perspetivas de esperança que Leão XIV nos traz.
Finalmente, chegámos ao tema que motivou aquela chamada cuja duração final acabou por ser o triplo do previsto: o resultado das eleições de domingo, 18 de maio, e as perspetivas para o futuro do Portugal político.
Procuraremos nestas linhas transcrever a conversa que tivemos. Fazemo-lo porque sentimos que, mais do que uma sistematização dos temas abordados num artigo “clássico”, o próprio método de conversação e de pensamento em conjunto poderá ser inspirador para o modo de participarmos ativamente e pela positiva no futuro da nossa Democracia. Mas também porque reconhecemos que, para muitos dos assuntos de que falámos, não temos propriamente respostas e precisamos de continuar a conversar, a pensar e a estudar.
– Como leste os resultados das eleições?
– Não me surpreendeu a subida da Aliança Democrática (AD) e do Chega, mas não esperava que o Partido Socialista (PS) baixasse tanto a votação.
– Eu por acaso pensei que as polémicas enfrentadas pelo Chega no início do ano (o caso das malas e a acusação de pedofilia) afetassem o seu resultado. De facto, não esperava que baixasse muito o resultado face a 2024, mas nunca imaginei que o acréscimo de votos do Chega pudesse ser o dobro do acréscimo da AD.
– Esses casos aconteceram há demasiado tempo para os eleitores se lembrarem deles. Se as eleições tivessem sido em fevereiro, a história teria sido outra. Mas, entretanto, o monotema político em Portugal durante estes meses e que invadiu a campanha foi somente o caso Spinumviva. Por isso houve quem subisse tanto e quem descesse tanto.
– De facto, vivemos num mundo onde reina o imediato, e onde os factos políticos passam muito rapidamente do prazo de validade… Mas deixa-me dizer-te que me envergonhou bastante aquele debate da moção de confiança ao Governo onde, mais do que negociar o futuro do país, o que estava em causa era lutar por quem sairia por cima para o novo ciclo de poder que se aproximava.
– Sim, diria que uma das coisas que mais afasta as pessoas da política e mais motiva os votos de protesto é justamente o estar na política pela tática partidária, para o favorecimento pessoal e para alargar a esfera de influência, em vez de governar para as pessoas.
– Sim, diria que uma das coisas que mais afasta as pessoas da política e mais motiva os votos de protesto é justamente o estar na política pela tática partidária, para o favorecimento pessoal e para alargar a esfera de influência, em vez de governar para as pessoas.
– Quanto às causas desta subida do Chega, além desse tal voto de protesto, muito já se tem escrito: a perceção de insegurança nas cidades, o aumento rápido da imigração num espaço de tempo relativamente curto e que afeta todo o território, a cultura de corrupção ou de “amizades” e o sentimento generalizado de que os sucessivos governos são incapazes de resolver os problemas das pessoas.
– Paradoxalmente, essa ideia de “resolver os problemas das pessoas” corre o risco de ser mais um chavão. É assim tão fácil resolver os problemas das pessoas? Por onde se começa? Pelo local, pessoa a pessoa, problema a problema, ou pela política geral, esperando que o decretar de uma lei gere com o tempo os efeitos desejados?
– Na campanha, houve debates (apesar de não terem sido a maioria) em que se discutiram medidas para problemas concretos, nomeadamente face ao problema da habitação. Para limitar a inflação imobiliária, devemos fomentar a construção pública, impor tetos às rendas ou deixar o mercado a funcionar livremente?
– Aqui parece-me que é fundamental perceber que os problemas são complexos. Por muito que desejemos apresentar soluções milagrosas, os problemas que Portugal enfrenta são sobretudo sistémicos: estamos dependentes do que acontece na Europa e no mundo, para o bem e para o mal. A nossa economia está aberta a muitos países e, sendo pequena, é mais influenciada do que influenciadora. Neste sentido, para resolver os problemas reais das pessoas, diria que seria mais interessante basear-nos em evidência científica e em comparação com políticas de outros países, do que somente em ideologia política.
– Mas será que isso nos garante respostas simples ou que podemos, por assim dizer, partir os problemas em fatias? Parece-me que, como diria o Papa Francisco sobre a crise climática, “tudo está interligado”, e não podemos separar o “grito da terra do grito dos pobres”. O mesmo se poderia dizer dos problemas que o nosso país enfrenta.
– Nem mais! É impensável afrontar o problema da habitação sem perceber as dinâmicas dos fundos de investimento imobiliário; seria inocente debater o futuro da sustentabilidade da segurança social sem compreender profundamente a demografia, que, por sua vez, é influenciada pelas condições económicas das famílias e pelos valores da sociedade acerca de constituir família e ter filhos.
– Parece que é todo o sistema no qual estamos inseridos que nos dá a sensação de estarmos continuamente “em crise”. Essa terá sido também uma das causas para muito do voto de protesto: as pessoas sentirem que, por mais que trabalhem, nada muda. Os ricos tornam-se mais ricos e os pobres continuam a “penar”.
– Eu acho que é exatamente nesse sentido que o Papa Francisco dizia que “esta economia mata”: sem diabolizar a economia social de mercado, condenava as dinâmicas de concentração de riqueza deste capitalismo financeiro, das transações financeiras que não estão ligadas ao trabalho real das pessoas, que não promovem o seu crescimento material e o seu desenvolvimento integral. Não foi por acaso que o Papa Leão XIV escolheu este nome: a nova revolução industrial “coloca novos desafios na defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho”. No limite, estas dinâmicas geram fenómenos de hiper-desigualdade sem que o cidadão comum sinta que “saiu da cepa torta”.
A absolutização do crescimento económico sem mais é prejudicial não só para o ambiente e a sociedade, mas também, paradoxalmente, para a economia numa perspetiva de longo prazo. O crescimento é necessário para desenvolver o país e redistribuir a riqueza. Mas o crescimento por si só, assim divinizado por este paradigma tecnocrático, é problemático.
– Na verdade, a absolutização do crescimento económico sem mais é prejudicial não só para o ambiente e a sociedade, mas também, paradoxalmente, para a economia numa perspetiva de longo prazo. O crescimento é necessário para desenvolver o país e redistribuir a riqueza. Mas o crescimento por si só, assim divinizado por este paradigma tecnocrático, é problemático. Segundo Paolo Conversi, é um crescimento sem criação de novos empregos (“jobless growth”), que só beneficia os ricos (“ruthless growth”), sem reforço da participação cívica (“voiceless growth”), com perda de identidade cultural (“rootless growth”) e que sacrifica as gerações futuras (“futureless growth”). Em síntese, um crescimento económico que não diminua as desigualdades, que não beneficie quem tem menos e se sente esquecido, jamais será um meio eficaz para promover o tal desenvolvimento integral que a dignidade da pessoa humana exige e dará azo a todo o tipo de populismos.
– Em sentido contrário, li há uns tempos uns textos sobre uma economista chamada Mariana Mazzucato que propõe para os estados uma “Economia de Missão”, isto é, que o Estado, em vez de interferir em toda a Economia, se direcione intencionalmente para um setor estratégico e o apoie no seu desenvolvimento. Um pouco como fizeram os EUA na expansão espacial dos anos 60 ou os governos de Cavaco Silva com a indústria do calçado na década de 85-95, por exemplo. A mesma intuição sobre os “setores estratégicos” apresentou Mario Draghi no relatório do ano passado “O futuro da competitividade europeia”. Seria interessante que Portugal fizesse algo semelhante, à sua escala: escolher um setor produtivo, apontar as baterias (também públicas) para aí e gerar riqueza com e para os agentes nacionais. Assim, poderíamos ganhar alguma independência e não estar somente à mercê de interesses económicos estrangeiros e a reboque do que acontece às economias vizinhas.
– Isso levanta questões sobre em que setores investir, como decidir de maneira transparente… Mas parece-me que é importante reconhecer que a dicotomia Estado-Mercado ou socialistas-liberais que marca o debate público acaba por ser simplista. O Estado tem muitas vezes um papel importante no investimento e investigação. Se não somos capazes de reconhecer estas dinâmicas, não conseguimos imaginar respostas criativas para os problemas de hoje. E assim parece que estamos em crise há 30 anos em Portugal e que o discurso pessimista não muda, de facto. Mas terá de ser sempre assim?
Mas parece-me que é importante reconhecer que a dicotomia Estado-Mercado ou socialistas-liberais que marca o debate público acaba por ser simplista. O Estado tem muitas vezes um papel importante no investimento e investigação. Se não somos capazes de reconhecer estas dinâmicas, não conseguimos imaginar respostas criativas para os problemas de hoje.
– Li há uns dias um artigo no Ponto SJ sobre as eleições no Canadá e o modo como, num cenário adverso, o sucessor do primeiro-ministro Justin Trudeau conseguiu fazer uma campanha fresca, pela positiva, com uma ideia para o país. Em poucos meses conseguiu derrotar o Partido Conservador, cuja estratégia – que redundou em fracasso eleitoral – passou por personalizar os problemas do país no ex-primeiro-ministro, focando-se em olhar para o passado.
– Aconteceu em Portugal agora algo semelhante com a Esquerda e que pode explicar a sua histórica quebra eleitoral! O PS baseou muita da sua campanha a apontar o dedo à falta de ética de Luís Montenegro para ser primeiro-ministro e o Bloco de Esquerda focou-se em acenar com o fantasma da extrema direita. Já o Livre destacou-se por um modo de estar mais propositivo, fresco e voltado para soluções de futuro, nomeadamente quanto à governabilidade. Os resultados destes três partidos falam por si.
– De facto, em política o estilo do discurso faz muita diferença. Não é só um apêndice, é ele próprio conteúdo político. Tenho-me perguntado muito como reagir ao discurso inflamado e tantas vezes incendiário do Chega. Será que o devemos respeitar assim como é, somente por ter tido mais de 1 milhão e 300 mil votos e pela sua grande implantação nacional? Parece-me evidente que estabelecer cordões sanitários de “decência” contra a indecência já provou ser contraproducente, além de democraticamente desrespeitador. Mas fazer como se nada fosse não me parece dignificante para as nossas instituições.
– Eu diria que aqui o futuro Governo e o futuro Presidente da Assembleia da República têm um papel fundamental, desmascarando o discurso de ódio, a propaganda oca e chamando à responsabilidade: para negociar medidas, dando responsabilidades na condução dos trabalhos parlamentares, no fundo, diluindo a euforia no banho da realidade. Sair da bancada e entrar em campo. Por outro lado, não é líquido que o partido se modere pelo facto de ter um papel mais ativo nas decisões. As diversas experiências em vários países europeus não parecem ter levado a uma moderação. Como lidar então com estes partidos que põem em causa o sistema democrático?
Parece-me evidente que estabelecer cordões sanitários de “decência” contra a indecência já provou ser contraproducente, além de democraticamente desrespeitador. Mas fazer como se nada fosse não me parece dignificante para as nossas instituições.
– E o discurso das outras forças políticas, será que tem necessariamente de ser mais acinzentado, racional e menos emotivo? É possível ter um discurso apaixonado que não foge da complexidade, que é simples mas não é simplista?
– É curioso falares disso, porque nestes dias tenho-me recordado do discurso do João Miguel Tavares nas cerimónias do 10 de junho de 2019. Ele, dirigindo-se à classe política, fazia literalmente um apelo ao sonho, a um projeto mobilizador com objetivos claros: “Deem-nos qualquer coisa em que acreditar”.
– Sim! As pessoas precisam de um discurso que as toque, capaz de contar histórias, usar metáforas, fazer emergir emoções, que exorte às virtudes, à beleza, à verdade e à bondade e que as faça acreditar que o futuro não é sinónimo de crise e que, juntos, podemos construir um país melhor.
– Nestes tempos, em que alguns se dizem enviados por Deus para cumprir uma missão unipessoal, num ímpeto messiânico que só parará quando atingir o poder, pode parecer mais fácil deixarmo-nos levar por essas vozes, por ventura aliciantes. Elas dizem-nos que cumprido o seu objetivo, tomado o poder, tudo se resolverá imediatamente, facilmente, automaticamente.
– Sobre isso, agora que já se faz tarde, é bom recordarmos que já temos Messias e não precisamos de outro: o Bom Pastor que deu a vida pelas suas ovelhas e quer que elas tenham vida em abundância, que floresçam, que se realizem integralmente. Ele conta connosco para, na sociedade, na política, no trabalho, nas nossas famílias e comunidades, seguirmos o Seu caminho, construirmos o Seu Reino e vivermos ao Seu estilo e segundo os Seus verdadeiros valores.
“Não nos ardia o coração, quando falávamos pelo caminho?”. Levantando-se, voltaram imediatamente para a comunidade e encontraram reunidos outros companheiros e disseram-lhes: “Realmente o Senhor esteve no meio de nós durante esta noite!”
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.