Diante de uma surpreendente noite de estrelas, do espanto provocado por uma cidade vista desde o alto de uma montanha. Diante do silêncio que nasce de um rosto atravessado pela dor, da ternura que o bebé acende no olhar deslumbrado dos seus pais, já todos nos sentimos ultrapassados e pequenos.
Esses breves instantes rompem a monotonia do nosso modo de ver o mundo. Experimentamos a novidade como se abríssemos os olhos pela primeira vez.
A pequenez de que tomamos consciência e a abertura a que nos sentimos convidados ajudam a revelar uma verdade escondida. Somos seres dependentes. Recebemos a vida e o mundo. Não nos inventamos a nós mesmos.
A modernidade ajudou-nos a valorizar a liberdade e a autonomia e com isso teve um papel decisivo na defesa da dignidade do ser humano e dos seus direitos. Mas, uma boa parte da filosofia e do pensamento parecem ter esquecido que a dependência não é apenas uma experiência própria da infância, da velhice ou dos momentos de doença em que a nossa debilidade é mais visível. A dependência é um dos traços mais profundos e bonitos do ser humano.
Este esquecimento tem um preço, um preço que não se esconde atrás de belas metáforas, um preço que tem consequências sociais e que condiciona a propostas políticas: a competição sem cooperação, abandonar pessoas vulneráveis deixando-as escolher sozinhas em processos em que precisariam de ser acompanhadas.
Sozinhos somos átomos perdidos, não vamos a lado nenhum.
Cada segundo da nossa existência está marcado por essa dependência. Dependemos de quem faz chegar a água a nossa casa, de quem prepara o pão durante a noite, daqueles que perderam horas de sono a montar um sistema capaz de regular o trânsito. Mas as coisas mais evidentes são aquelas de que mais facilmente nos esquecemos. Este esquecimento tem um preço, um preço que não se esconde atrás de belas metáforas, um preço que tem consequências sociais e que condiciona propostas políticas: a competição sem cooperação, o abandono de pessoas vulneráveis deixando-as escolher sozinhas em processos em que precisariam de ser acompanhadas.
E talvez por isso seja tão importante que a educação, em casa e na escola, nos ajude a tomar consciência desta realidade e de como apenas desenvolvendo o justo sentido da interdependência poderemos prevenir as doenças do autoritarismo e do isolamento.
Nas últimas semanas, ao retomar o ritmo dos estudos ou do trabalho, depois de um tempo de férias é normal que tenham sido traçados planos e objetivos. É normal que tenham sido definidas metas mais ou menos ambiciosas. Talvez pudéssemos inverter um pouco a lógica desses planos e metas, pensando menos naquilo que vamos fazer individualmente para alcançar esses objetivos e mais nas ajudas que vamos receber de outros. Tomando consciência como nesses projetos passados ao papel, há tanto que não depende de nós. Podemos olhar à nossa volta e reconhecer todos os laços que nos unem, toda a imensa rede de dependências em que estamos inseridos. Na escola, este seria um excelente exercício de “educação para a cidadania” conduzindo ao reconhecimento de que, por muito livres que queiramos e precisemos de ser, não podemos romper com essa rede de dependências sem que isso signifique desistir daquilo somos como pessoas e como sociedade.
A autonomia a que aspiramos não é uma carapaça que nos distingue e afasta dos outros. Somos únicos e irrepetíveis. Mas a nossa originalidade não está desligada das nossas relações. Dependemos dessas relações para ser quem somos. Abrindo os nossos sentidos ao mundo e aos outros, reconhecendo a nossa pequenez e vulnerabilidade, talvez possamos saborear a vida em todos os seus contrastes como um enorme presente.
Retocando uma imagem muito bonita de Mia Couto, talvez possamos descobrir que é o olhar do filho que dá à luz o amor da mãe.
Nota: Este texto foi é uma versão ligeiramente adaptada de um artigo originalmente publicado no site essejota, entretanto encerrado.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.