Nos últimos meses, têm sido divulgadas notícias de atrasos em serviços públicos com implicações importantes para a vida dos cidadãos. Muitos portugueses têm sido confrontados com elevados tempos de espera nos serviços de registo civil, existindo morosidade na renovação de cartões de cidadão e passaportes. Porém, bem mais grave é a situação de atrasos épicos, a incapacidade de resposta do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e suas implicações na vida de imigrantes e refugiados.
Em abril de 2019, a Carta Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa “Um olhar sobre Portugal e a Europa à luz da doutrina social da Igreja já alertava que “(…) o facto de Portugal ter agora as contas públicas aparentemente saneadas e uma dívida que, embora ainda muito elevada, goza da confiança dos mercados, não pode fazer esquecer a sua fraca resiliência a choques externos e a degradação dos serviços públicos, na sequência da quebra de investimento. Assim acontece na saúde e na educação, a par da degradação dos serviços prestados e do nível de carga fiscal mais elevado das últimas décadas.” Muito embora seja fundamental a reflexão sobre o atual contexto económico, político e social do país, importa não esquecer também o papel do serviço público na promoção de direitos e garantias previstos na Constituição.
Alguns cidadãos que tentaram diligentemente renovar o título dentro do prazo já pagaram coimas por atrasos que foram inteiramente alheios à sua vontade, o que é manifestamente injusto.
Atualmente, não existem nem vagas disponíveis para atendimento no SEF até ao final deste ano, nomeadamente para efeitos de renovação do título de residência e apresentação do pedido de reagrupamento familiar, nem previsão de abertura vagas para o próximo ano. O SEF justifica esta situação com o aumento da procura do Serviço em virtude da alteração à lei da nacionalidade e a falta de recursos humanos. Na tentativa de minimizar estas insuficiências, alguns balcões de atendimento prolongaram o horário de funcionamento e está anunciada a duplicação da capacidade de atendimento através da contratação de novos funcionários. Apesar disso, o problema parece não ter solução á vista.
Perante a falta de vagas e de alternativas, os operadores do contact center do SEF aconselham as pessoas a telefonar diariamente em diferentes horários, na expectativa de surgir uma eventual vaga no sistema, por desistência ou por via do alargamento de horários de funcionamento. A situação parece caricata. A única possibilidade de agendar é muito remota e praticamente impossível, uma espécie de lotaria que depende inteiramente da sorte de telefonar no momento exato.
Note-se que a lei de estrangeiros prevê prazos para efetuar antecipadamente o pedido de agendamento da renovação do título de residência e coimas para quem não os cumpre. Por esse motivo, alguns cidadãos que tentaram diligentemente renovar o título dentro do prazo já pagaram coimas por atrasos que foram inteiramente alheios à sua vontade, o que é manifestamente injusto.
Mas existem consequências bem mais gravosas. A Autorização de Residência habilita um cidadão estrangeiro a trabalhar e residir legalmente em Portugal. A caducidade deste documento pode implicar a perda do trabalho e dos meios de subsistência e consequentemente a perda das condições legalmente necessárias à sua renovação. É verdade que a perda do trabalho tem consequências negativas para nacionais e estrangeiros. No entanto, um cidadão português nunca será expulso do país por ficar sem emprego. Mas um imigrante que perde o trabalho e não consegue renovar o título de residência, fica em situação ilegal e por este “crime” pode vir a ser detido e expulso. Por outro lado, ainda que um cidadão estrangeiro continue a trabalhar e a pagar mensalmente os seus impostos e contribuições para a Segurança Social, se tiver a Residência caducada pode perder ou não ter acesso a benefícios sociais (e.g. abono de família, subsídio de desemprego). A caducidade do título impede ainda os cidadãos estrangeiros de viajarem para os seus países de origem, sob pena de problemas no regresso a Portugal, no posto de fronteira. Visitar familiares próximos ou participar num funeral durante este período, que é de duração imprevisível, está fora de questão.
Ainda que um cidadão estrangeiro continue a trabalhar e a pagar mensalmente os seus impostos e contribuições para a Segurança Social, se tiver a Residência caducada pode perder ou não ter acesso a benefícios sociais (e.g. abono de família, subsídio de desemprego).
Na verdade, os estrangeiros com os títulos de residência caducados por inexistência de vagas no SEF são empurrados para uma espécie de “limbo legal”, onde reina a insegurança e a incerteza, com implicações nos seus níveis de stress, bem como na sua saúde física e mental. Os níveis de ansiedade são particularmente evidentes no caso de imigrantes e refugiados que pretendem apresentar pedidos de reagrupamento familiar. Em particular no caso de refugiados, com familiares em países em guerra ou em campos sobrelotados, onde as condições de vida são críticas. Alguns dos familiares a reagrupar são mulheres grávidas e crianças impedidas de crescer junto dos seus pais.
Perante este cenário, há cidadãos estrangeiros desesperados dispostos a aceitar qualquer oportunidade de atendimento que surja no SEF, mesmo que isso implique uma deslocação de centenas e até milhares quilómetros para os Açores ou Madeira. A situação de vulnerabilidade em que se encontram torna-os vítimas de exploração e extorsão por parte de pessoas sem escrúpulos e redes criminosas que vendem as vagas no SEF por centenas de Euros. O próprio SEF fez uma participação ao Ministério Público por fundados indícios de crime relacionados com vagas de agendamentos.
Felizmente, no nosso país não têm singrado discursos de ódio e a defesa de políticas de migração restritivas. Mas a atual situação do SEF ilustra bem que há muito trabalho a ser feito, em diversos níveis, para que o discurso, a lei e a prática sejam coerentes. Não faz sentido falar em políticas de integração favoráveis e desenhá-las no papel se, na prática, não estão garantidas as condições mínimas para que o processo de integração decorra com normalidade.
No que diz respeito aos serviços públicos e organismos da Administração, estes estão ao serviço de todos os cidadãos e devem orientar a sua ação segundo os princípios da boa‑fé, da qualidade, da proteção da confiança, da comunicação eficaz e transparente, da simplicidade, da responsabilidade e da gestão participativa. Temos assim o direito de exigir explicações e de nos batermos por serviços públicos de qualidade, que assegurem o respeito de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados para todos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.