Diários de um desgoverno: gaslighting ou dissonância cognitiva?

Ao longo destes anos difíceis, que ainda mais cérebros custaram ao País, o nosso Governo tem dançado ao ritmo de uma música que só ele ouve.

Tenho muito pudor em criticar cegamente qualquer governo. O meu marido acha que eu tenho demasiada confiança na autoridade, mas a verdade é que a minha experiência de vida — uma de indubitável privilégio — ensinou-me que a generalidade das pessoas quer o melhor para os outros. (Algumas querem ainda estar melhor que as outras, mas isso é outra conversa!)

Na última década tive o privilégio de privar com pessoas que ocupavam vários (altos e baixos) cargos públicos, em todas as bancadas, e todas elas aparentavam ter um compromisso sincero com o posto, esforçando-se pelo melhor exercício das suas funções dentro das suas capacidades. Usando metodologias de esquerda ou de direita, os fins eram sempre semelhantes: o bem-comum, a garantia dos direitos humanos, e a otimização de recursos.

A vida não está fácil. Andamos de crise em crise: do Covid à Guerra na Ucrânia, e a erosão do poder de compra atingiu uma velocidade estonteante. Não é nada de novo: a uniformização dos preços na Europa desde a adesão ao Euro, as compras online e a globalização do mercado são fatores explicativos desde fenómeno, mas só ganham contornos vertiginosos quando se olha para os nossos salários estagnados, pobrezinhos e francamente ridículos quando confrontados com o custo médio de vida em Portugal.

É um processo que tem assolado muitas economias do Norte globalizado, mas que parece fustigar o nosso Cantinho à Beira Mar plantado com especial crueldade. Passámos de ter uma classe média remediada, para uma classe média atrapalhada, para uma classe média sufocada, que faz pão sem farinha e eu sinceramente não sei como sobreviveria não fosse a importância dos laços sociais e familiares intergeracionais no nosso país.

Passámos de ter uma classe média remediada, para uma classe média atrapalhada, para uma classe média sufocada, que faz pão sem farinha e eu sinceramente não sei como sobreviveria não fosse a importância dos laços sociais e familiares intergeracionais no nosso país.

Ao longo destes anos difíceis, que ainda mais cérebros custaram ao País, o nosso Governo tem dançado ao ritmo de uma música que só ele ouve. O que ao início me divertia, como se fosse uma tática de marketing agressiva e deliberada que o Governo espertalhão achava que ninguém topava, agora horroriza-me.

Veja-se a “feliz coincidência” do anúncio do término do regime dos Residentes Não Habituais, logo quando o país está inflamado com a crise de habitação, as ruas irrompendo com protestos. Foi muito conveniente que se alimentasse o discurso xenófobo, odioso e racista que culpa todos os problemas nos Outros — os estrangeiros ricos, por fazerem disparar preços e retirarem os portugueses das suas casas; os estrangeiros pobres, por ficarem com os salários (e os subsídios) que são justamente “nossos”; enquanto escondemos a nossa incapacidade como país em alinhar as condições de vida dos portugueses com o resto da Europa, ou ter serviços públicos que efetivamente servem o cidadão. Sinceramente, nunca esperei esta atitude deste lado da bancada. Talvez de outros (ou Daquele-Partido-Que-Todos-Conhecemos), mas o engajamento insidioso com esta narrativa é degradante, e sabe a traição.

E assim, o Governo assume uma postura filosófica de estoicismo, vendendo a ideia de que prefere abdicar de captar investimento estrangeiro para salvaguardar o bem-estar dos cidadãos, enquanto consegue por água na fogueira do inferno escaldante da habitação, que apenas políticas estruturais de fundo podem salvar. (E melhores salários. Já falei sobre salários?)

E assim, o Governo assume uma postura filosófica de estoicismo, vendendo a ideia de que prefere abdicar de captar investimento estrangeiro para salvaguardar o bem-estar dos cidadãos, enquanto consegue por água na fogueira do inferno escaldante da habitação, que apenas políticas estruturais de fundo podem salvar. (E melhores salários. Já falei sobre salários?)

Todo o país arde com a complacência de quem nos governa. Esta manhã, numa audiência com a Comissão da Saúde da Assembleia da República, em representação da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, perguntei-me se de facto não está a ocorrer um outro problema: um de profunda, ultrajante dissonância cognitiva.

Perante a chocante crise nas maternidades nacionais, fui apanhada de surpresa quando a deputada do Partido Socialista teceu longos elogios suportados por “dados”, dizendo que o programa governamental “Nascer em Segurança” está a ser um grande sucesso. Mais, teve a intrepidez e o descaramento de nos perguntar o que pensamos disto. Porque na verdade, é melhor que as maternidades e as urgências obstétricas nacionais estejam fechadas de forma planeada e sabendo-se antecipadamente, do que ter só fechos imprevisíveis.

O que pensamos disto…!? Pensamos que nunca se teve a lata de apelidar de “um sucesso” ao absoluto caos e insegurança em que está o estado dos cuidados de saúde materno-obstétricos em Portugal, em que não só as famílias deslocadas de centros urbanos têm dificuldade em encontrar portas abertas para parir em segurança, como é um problema que se alastrou (de forma planeada!) à maior área metropolitana do país. De que nunca se investiram tantos euros na Saúde, e ao mesmo se investiu tão pouco em políticas públicas estruturais que lidem com o problema da natalidade, o problema da violência obstétrica, o problema da falta de opções e falta de respeito pelas escolhas das famílias que crescem. Que os profissionais de saúde estão exaustos, que as famílias estão exaustas, e que apesar de as nossas reivindicações serem as mesmas, e parece haver uma coreografia orquestrada atrás da luta entre classes profissionais e entre utentes e profissionais, com um maestro atrás disto tudo. Pensamos que estes retrocessos nos direitos sexuais e reprodutivos femininos, direitos humanos, a que compete a a um Estado de Direito zelar, estão a ser atropelados sem o menor respeito pela dignidade da pessoa humana — e ainda para mais sem salvaguarda dos direitos daquelas pessoas mais frágeis e vulneráveis, como os bebés que nascem, e sem falar daquelas que têm ainda mais dificuldades acrescidas ao acesso a estes cuidados, como as pessoas migrantes, os pobres, ou as portadoras de deficiência.

Fico triste e chocada, e não sei o que pensar. Não sei o que é pior: um Executivo agarrado ao poder e sem escrúpulos, ou um que seja só incompetente. Entre as duas hipóteses, venha o diabo e escolha, que o país já arde alegremente para o receber.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.