No marco dos 10 anos da publicação da Encíclica Laudato Si’, propomos uma reflexão sobre a natureza e os aspetos fundamentais deste documento, que tem gerado tantos processos frutuosos na Igreja e que continua a ser amplamente reconhecido para lá do mundo católico. Apesar da novidade que encerra, não se trata de um documento de rutura, mas antes de continuidade, com tantas reflexões e ensinamentos já anteriormente trazidos pela Doutrina Social da Igreja, assim como abordados por outras confissões religiosas.
É sobretudo pela forma como foi intencionalmente estruturado, em jeito de caminho espiritual em diálogo, que se revela como um catalisador de processos interiores, de abertura e movimentos geradores de mudança. Não é um documento de moral e bons costumes, num estilo prescritivo ou de manual de receitas. É um documento vivo, dirigido a todas as pessoas de boa vontade, que tem o condão de nos enxertar na História maior a que pertencemos, na Terra que nos acolhe e sustenta, de gerar o desejo de cuidarmos uns dos outros, reconhecendo e recuperando o sentido profundo da nossa vida. Um documento escrito com um olhar simultaneamente lúcido, face à realidade que nos envolve e pela qual somos co-responsáveis, e positivo pelo olhar enraizado na bondade de Deus, abrindo permanentemente horizontes de Esperança.
Se olharmos para a Laudato Si’ (LS) com a expetativa de um documento «salvador» no que toca à consciencialização ecológica, liderado por uma Igreja Católica plenamente convertida aos desafios ambientais, podemos ficar frustrados e encontrar justificações para baixar os braços. De facto, a LS surge como voz profética, que denuncia, mas não prescreve soluções técnicas. Não é uma encíclica verde, pois reconhece a natureza interligada das crises ambientais, económicas e sociais, e não é um texto sagrado, um estudo de caso ou uma síntese de boas práticas. Vai mais fundo, desafiando à reflexão de cada pessoa e de cada sociedade, e apresenta instrumentos que podem desencadear processos de cuidado e transformação.
Passada uma década, podemos dizer que continua atual (e ainda mais premente) o apelo que o Papa Francisco nos lançou: «o urgente desafio de proteger a nossa casa comum, que inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral» (LS 13). Em cada tempo, somos testemunhas de tanto bem alcançado e, ao mesmo tempo, de tanta destruição e sofrimento, em ciclos e contraciclos.
O que destacar destes 10 anos de vida? Tendo por base um documento tão rico e profundo, poderíamos adotar diferentes abordagens, dimensões e linhas de análise. Optámos por apontar quatro veios de sentido que nos parecem estruturantes, quer do caminho já percorrido, quer para o futuro: conversão ecológica, ecologia integral e cuidado, diálogo e alegria e esperança.
Conversão ecológica
A encíclica recupera um termo que tinha sido utilizado pela primeira vez pelo Papa João Paulo II – conversão ecológica. Sendo a conversão um processo contínuo ao longo da vida dos crentes, marcado por uma transformação do coração cada vez mais configurado ao coração de Jesus, a conversão ecológica não é mais do que «deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus» (LS 217) através de «uma profunda conversão interior». Uma conversão que, sendo em primeiro lugar individual, é necessariamente também uma conversão comunitária (LS 219), bem como uma conversão que a própria Igreja precisa de fazer pondo em marcha passos concretos nas nossas comunidades, movimentos, paróquias e dioceses.
Muitos têm sido as mulheres e homens tocados pelo Espírito Santo neste caminho de conversão ecológica, e várias são as manifestações de conversão comunitária, que gera espaços e dinâmicas que abrem novos caminhos para uma ação conjunta, assim como novas expressões de uma espiritualidade ecológica.
Muitos têm sido as mulheres e homens tocados pelo Espírito Santo neste caminho de conversão ecológica, e várias são as manifestações de conversão comunitária, que gera espaços e dinâmicas que abrem novos caminhos para uma ação conjunta, assim como novas expressões de uma espiritualidade ecológica.
Alguns exemplos a nível global são a criação do Movimento Laudato Si (também presente em Portugal) e a opção da Companhia de Jesus em ter como uma das suas preferências universais apostólicas «colaborar com o cuidado da Casa Comum». Em Portugal, são exemplos de processos inspirados pela Laudato Si’ a criação de uma equipa de Ecologia na estrutura da CVX, a missão da Casa Velha e a criação da Rede Cuidar da Casa Comum. Mas há ainda um longo caminho a fazer dentro da Igreja em Portugal. Nas nossas Dioceses, seria importante ter uma equipa diocesana para ecologia integral, à semelhança do que acontece para outros temas. Nas nossas paróquias, a constituição de grupos de conversão ecológica poderia dar a conhecer esta encíclica (por vezes mais (re)conhecida fora do que dentro da igreja), ou dar passos concretos para a melhoria da sustentabilidade, como é proposto a todas as instituições católicas na iniciativa lançada pelo Vaticano – a Plataforma de Ação Laudato Si. E quando a conversão ecológica é vista como um capricho de alguns, alheia à fé ou como vocação específica apenas de outros, é bom recordar as palavras do Papa Francisco que sublinham que «Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspeto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa».
Ecologia Integral e Cuidado
Embora a Doutrina Social da Igreja já incluísse o cuidado da Criação, na carta encíclica LS o Papa Francisco introduz o conceito de Ecologia Integral. Este termo inspira-se numa abordagem holística e sistémica, e vai para além do ambientalismo, ao integrar as dimensões ambientais, sociais, políticas, económicas, culturais e espirituais. Sobre esta última dimensão, o Papa Francisco recorda o seu antecessor, para dizer que «os desertos exteriores se multiplicam no mundo, porque os desertos interiores se tornaram tão amplos», (LS 217). Francisco elevou assim a questão das alterações climáticas e da necessidade de cuidar da Terra a um patamar não meramente político, ambiental ou económico, mas a uma questão moral e ética que nos deve comprometer e mobilizar enquanto Humanidade.
A LS convida-nos também a tomar consciência das motivações adequadas para este cuidado quotidiano, porque «toda a mudança tem necessidade de motivações e dum caminho educativo» (LS 15). «Não se trata tanto de propor ideias, mas sobretudo falar das motivações que derivam da espiritualidade para alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo. Com efeito, não é possível empenhar-se em coisas grandes apenas com doutrinas, sem uma mística que nos anima, sem uma moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária» (LS 216).
Só cuidamos o que conhecemos e amamos. Tomando consciência da nossa própria história de sermos cuidados e amados, germina em nós o desejo e a vontade de amar e cuidar. Mesmo não sabendo como, lançamo-nos, não a partir de nós mesmos, das nossas ideias e capacidades, mas confiados, humildes e agradecidos, num amor prévio que nos sustenta. A motivação adequada para o cuidado descobre-se na contemplação da História que nos ultrapassa e integra.
Diálogo
Num mundo (e Igreja) crescentemente polarizado, o Papa Francisco apresentou como grande estratégia e plano de ação o diálogo. A LS revelou-se como uma «ampla mesa», à volta da qual todos se podem sentar, todos podem ser ouvidos e todos podem fazer propostas. Tem gerado e sustentado inúmeros processos de diálogo entre os mais diferentes atores: líderes religiosos de várias confissões, políticos, cientistas e líderes económicos, assim como a diversos níveis – familiar, comunitário, local, global. E animou o próprio processo de escrita deste artigo que resultou do encontro e da reflexão dialogada à volta de uma refeição partilhada à mesa.
O apelo do Papa foi o de «um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós». Um apelo que é reforçado com redobrada urgência na exortação apostólica Laudato Deum (em 2023) em que é manifesta a frustração sobre a falta de progresso e de ambição daqueles que foram convidados a sentar-se à mesa da LS, assim como nas mesas anuais da COP (Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas).
O diálogo que é proposto pela LS não é retórica, nem espaço de conforto, ou de mais e vazias palavras ou promessas. É um diálogo que nos empurra para novos espaços de confronto de ideias, de escuta de vivências e experiências (próximas e distantes). Mobiliza a ciência, abre-se à diversidade de opiniões, sensibilidades e caminhos, sem receio de ocupar o espaço público e político. Um diálogo onde as periferias têm um lugar à mesa e em que aqueles mais impactados pelas alterações climáticas (os que menos contribuíram para elas) podem passar a ter voz e a ter parte nas decisões. Só assim é possível encontrarmos, com criatividade e justiça, «grandes percursos de diálogo que nos ajudem a sair da espiral de autodestruição onde estamos a afundar» (L163).
O diálogo que é proposto pela LS não é retórica, nem espaço de conforto, ou de mais e vazias palavras ou promessas. É um diálogo que nos empurra para novos espaços de confronto de ideias, de escuta de vivências e experiências (próximas e distantes). Mobiliza a ciência, abre-se à diversidade de opiniões, sensibilidades e caminhos, sem receio de ocupar o espaço público e político.
De notar também como o Cuidado com a Criação tem sido uma terra fértil para o ecumenismo e para o diálogo inter-religioso. De facto, todas as grandes tradições religiosas têm um enorme património partilhado ao reconhecerem um Deus Criador e uma Casa Comum. Por exemplo a Igreja Ortodoxa foi pioneira no mundo cristão no estabelecer o dia 1 de setembro como o Dia de Oração de Cuidado da Criação (a que a Igreja Católica se uniu em 2015) e são várias as iniciativas ecuménicas neste âmbito entre as quais se destaca o Tempo da Criação. Em 2024, a Comunidade Islâmica lançou também um documento de referência – Al Mizan – com uma perspetiva islâmica sobre as questões ambientais.
Alegria e Esperança
Ao longo dos últimos 10 anos, a LS abriu múltiplos caminhos de Esperança, e continua a desafiar-nos a sermos mensageiros de alegria, esperança e humanidade com a nossa vida. Nela, o Papa Francisco relembra que «a esperança convida-nos a reconhecer que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos fazer alguma coisa para resolver os problemas» (LS 61) e também que o «mundo é algo mais do que um problema a resolver; é um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor» (LS 12). Quando temos as nossas raízes na gratidão, por tanto bem recebido, e damos passos conjuntos concretos, que são de uma conversão comunitária, experimentamos e saboreamos a alegria e a esperança que Jesus nos oferece tal como aos discípulos de Emaús: «Não nos ardia o coração?» (Lc 24,32)
A LS torna mais alto o clamor dos pobres e o clamor da terra, mas quase de forma paradoxal eleva também o hino de louvor e a alegria simples de que São Francisco de Assis é «exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade» (LS 10)
Deste modo, e face a uma urgência cada vez maior, face a sinais alarmantes, a encíclica termina com um desafio exigente e que nos pede uma renovação interior diária «Caminhemos cantando; que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança” (LS 244)
Um rasgo inspirado do Papa Francisco
Iniciámos este processo de escrita de um artigo sobre os 10 anos da Encíclica Laudato Si’ antes da Páscoa do Papa Francisco. Importa, por isso, concluí-lo afirmando que a promoção de uma ecologia integral e de uma cultura do cuidado são traços fundamentais do legado rico e profundamente inspirado pelo Espírito Santo que o seu pontificado nos deixa. Mas este legado não se conjuga no passado. Este documento vivo que é a Laudato Si’ continua a propor-nos um caminho concreto de conversão interior, ancorado num olhar agradecido sobre a vida, aplicável a qualquer realidade individual ou comunitária. Este caminho de mútuo reconhecimento e efetiva colaboração, gera um sentido de pertença e de comunhão que são catalisadores do cuidado pela nossa Casa Comum. E para isso, cada uma e cada um de nós precisa de o encarnar. Os nossos passos em caminho são precisos e é o próprio Papa Francisco que nos diz:
«E não se pense que estes esforços são incapazes de mudar o mundo. Estas ações espalham, na sociedade, um bem que frutifica sempre para além do que é possível constatar; provocam, no seio desta terra, um bem que sempre tende a difundir-se, por vezes invisivelmente» (LS 212).
Laudato Si’!
Passos ecológicos
- ler ou reler a Encíclica Laudato Si’
- dedicar tempo à contemplação da Criação
- fazer um exame de consciência ecológico
- celebrar a semana Laudato Si’
- ver o filme a Carta
- visitar a Casa Velha.
Testemunhos
Recordo perfeitamente a profunda alegria que senti logo nos primeiros momentos em que peguei na encíclica que o Papa Francisco lançava naquele mês de junho de 2015. Havia em mim uma enorme expectativa ao começar a leitura, mas também já um sentido de responsabilidade, missão e no coração cântico de louvor – cujo título Laudato Si’ tão bem anunciava! Peguei num lápis para ir sublinhando e tirando notas, mas não conseguia parar de sublinhar! Tudo me parecia importante, profundo, transformador! Um misto de confirmação e novidade, no caminho que nos era proposto, a partir da Doutrina Social da Igreja, de ver, avaliar, agir, celebrar agora aplicado ao cuidado para com a Casa Comum. Foi para mim um novo “crisma”, uma confirmação de que Deus está presente em todas as coisas, e que o nosso cuidado uns com os outros é também o cuidado com a criação, que é expressão e louvor de um Deus criador. Já tinha testemunhado muitas vezes que o grito dos pobres é também o grito da terra, mas esta carta do Papa ia mais longe, desafiando-nos a compreender e a viver o “tudo está interligado”.
Susana Réfega
A Laudato Si’ foi como uma renovação do Batismo para mim, abriu e abençoou a consciência da minha vocação pessoal como cristã, na minha realidade concreta, integrando todas as dimensões da minha história, num processo progressivamente partilhado e confirmado com outros, a começar pela minha família. A Casa Velha confirmou-se como profecia/parábola do cuidar da Casa Comum, em ligação com outras comunidades e organizações, de perto e de longe, como pequenas sementes que fazem germinar o Reino. Fazendo memória destes 10 anos, não posso deixar de sorrir ao lembrar o sem número de lugares, mesas, conferências em que partilhei a Laudato Si – escolas, palestras municipais, comunidades religiosas, universidades, redes nacionais e internacionais. Que permanente espanto agradecido por sentir que o que se está a realizar, a ser, a partilhar, está ligado e em íntima sintonia com o coração da Igreja, no desafio de cuidar da nossa Casa Comum, cada um a partir do seu “canteiro”; que as ações locais refletem as estratégias globais. Que simples alegria poder abrir em cada um a certeza de que todos somos filhos muito amados, chamados à vida, para com a nossa vida, amar e cuidar, cada um na sua história, como parte preciosa do Todo.
Margarida Alvim
Li pela primeira vez a Laudato Si’ quando me cruzei com a Economia de Francisco. Dois processos proféticos lançados pelo Papa Francisco e com inspiração em São Francisco de Assis. O sentido que encontrei nas páginas desta encíclica alargou os horizontes das minhas inquietações e desejos. A afirmação de que a realidade é complexa e de que precisamos de caminhos integrais, que considerem as diferentes dimensões da vida, veio ao encontro da minha intuição de que precisamos de ir à raiz dos desafios para dar respostas verdadeiras e coerentes. Ou há uma ecologia de tudo e para todos ou não há ecologia. Ou a economia serve as pessoas e cuida da Terra ou não é verdadeira economia. Acredito que trabalharmos e darmos testemunho de uma ecologia integral é a missão dos nossos tempos. E que a atual mudança de época pede uma transformação a partir do interior. Precisamos de nos experimentar amados e cuidados em primeiro lugar por Deus para assim sermos reenviados a amar e cuidar. A Laudato Si’ é para mim um paradigma relacional, que convida a cuidarmos as nossas relações para darmos mais fruto e construirmos o Reino: a relação comigo, com os outros, com a terra, e com Deus. Porque a relação salva o mundo: ontem, hoje e sempre.
Rita Sacramento Monteiro
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.