Se considerarmos o que se passa no ensino superior em países como a China, a Rússia e até a Turquia (e já lá vai uma boa parte da população mundial), duvido que as universidades, no mundo em geral, estejam a salvo da instrumentalização e até da manipulação que grassa atualmente na cultura mundial, a uma velocidade estonteante.
Os desafios que hoje obrigam a educação a refazer a sua missão, o seu perfil institucional e as suas práticas educativas, são tão gigantescos que não sei se aquilo que mais me amedronta é este gigantismo ou é a indiferença ou a lentidão com que se olha em volta e se (tres)leem os “sinais dos tempos”.
Na época inaugural da pós-verdade, da hiper-conectividade e do crescimento exponencial da inteligência artificial, no tempo em que as alterações climáticas e a sustentabilidade do planeta estão tão aflitivamente na ordem do dia, neste tempo em que o espaço encolheu e o tempo aceleradamente se desgovernou, nestes dias em que os populismos crescem e a corrupção se alarga na política e o ceticismo cresce vertiginosamente entre os cidadãos, fará algum sentido dar por garantido um futuro de liberdade académica, de rigor espistémico e de autonomia institucional para as universidades? E será que estas vão garantidamente ser financiadas por fundos públicos, ao mesmo tempo que preservam e asseguram a procura da verdade, a liberdade, a autonomia e a luta incessante pela dignidade humana e pelo bem comum?
Neste novo tempo da manipulação permanente e generalizada das pessoas, crianças, jovens e adultos, restará que papel cultural e social para as universidades?
São questões como estas (talvez mais adocicadas) que estão a gerar uma onda de reflexões, um pouco por todo o mundo, sobre o futuro das universidades (do ensino superior, em geral).
Elevada competência técnica sem sentido ético é uma escandalosa irresponsabilidade cultural e social das universidades!
Serve esta crónica para deixar quatro simples traços-desafios-inquietações sobre este futuro.
Cooperação – O futuro será o co-estudo e a co-investigação (co-work), com muito mais colaboração entre disciplinas e entre departamentos, pois a complexidade dos problemas e desafios culturais e sociais não deixa espaço a outro caminho. Mais cooperação entre as universidades e as sociedades, a braços com dilemas enormes e sem um histórico científico e técnico consolidado.
Integração das universidades em ecossistemas de inovação (económica e social) e co-construção de novos compromissos sociais plurianuais com as comunidades (compromissos estes porventura demasiado negligenciados quando o financiamento estava garantido!).
Ambientes digitais – Os ambientes educativos serão profundamente digitais, mais desmaterializados, com ligação dos professores e alunos às tecnologias cloud e à e-memória, com MOOC (Massive Online Open Courses) acessíveis a todos, apelando à participação mais intensa e muito mais flexível dos alunos, que serão parceiros novos e com novas exigências de aprendizagem, apelando também a mais capacidade crítica, mais pensamento independente e não alinhado, mais capacidade criativa, co-construída. Tudo a requerer infraestruturas muito renovadas, uma capacitação em larga escala, estudantes e professores que integrem, dominem e tirem partido destes novos ambientes educativos.
Diploma em branco – Que será o diploma do ensino superior para além de um certo número de ECTS (Sistema europeu de transferência e acumulação de créditos) e de um percurso em branco, a ser percorrido por cada um, com umas quantas exceções? O ensino superior será cada vez mais dominado pela escolha individual de percursos, pela interligação de saberes (já há licenciaturas em duas áreas do conhecimento e a festa ainda está apenas a começar!). A tendência será um estudante, um projeto de estudos e um portefólio, tudo portanto com mais flexibilidade, mais liberdade de escolha e mais transferência de créditos. Assim, a tutoria, o mentoring, e a orientação, em geral, tenderão a ser traços de um perfil de professor que Bolonha prometia e que parecia que já não viria! E o diploma, que se universalizará como aconteceu com o curso do ensino secundário, irá porventura diferenciar-se mais pelo “suplemento ao diploma” do que pelo tradicional canudo!
Competências técnicas e éticas – Formar jovens competentes e boas pessoas, eticamente bem fundadas! Os “novos falcões” que destruíram o nosso país, nos anos 90 e 2000, formaram-se nas nossas melhores universidades, incluindo a Católica, e não tiveram qualquer pejo em desbaratar a confiança e a esperança no nosso futuro pessoal e comum. Ainda se estão a rir das penas por que estamos a passar (e das suas, as outras, que não lhes foram aplicadas!). Elevada competência técnica sem sentido ético é uma escandalosa irresponsabilidade cultural e social das universidades! A postura ética: o respeito pelos outros e pelas diferenças pessoais e culturais, a tolerância e a interculturalidade, o sentido do bem comum e da salvaguarda da dignidade humana e o amor para com os que mais sofrem e mais desprotegidos se encontram.
Ou seja, se quisermos invocar um futuro para a gesta heróica e quase milenar das universidades, devemos colocar diante de nós este dilema: “Não mudar nada. Transformar tudo”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.