Apesar de fazer parte do léxico cristão, particularmente significante nos ritmos do ciclo da Quaresma, a «ascese» não tem, atualmente, uma boa cotação na arena das ideias religiosas. Recentemente, contactei com um estudo de Isabelle Jonveaux sobre a vida de monjas e monges católicos, na Europa contemporânea. A investigadora social observa que, no conjunto das entrevistas realizadas, o termo «ascese» não tem uma presença digna de nota. É um facto que a vida monástica não se define exclusivamente por essa prática, e que a ascese não é um privilégio exclusivo do quotidiano monástico. No entanto, recorde-se que Bento de Núrsia pensava o valor do trabalho na ótica da ascese. Por seu lado, Adalbert de Vogüé, beneditino falecido em 2011, especialista no estudo da ascese monástica, escrevia em 1977 que a ascese já não tinha qualquer lugar na vida dos monges. De alguma forma, essa desafeição pode ser vista como o exemplo de um movimento mais amplo de abandono da ascese como modalidade de inscrição espiritual no mundo – na qual o próprio corpo é, paradoxalmente, o veículo fundamental.
Curiosamente, mesmo sem a necessidade de devolver qualquer centralidade a esta palavra, muitos estilos de vida, nas nossas sociedades complexas, procuram implementar disciplinas diversas que visam devolver ao quotidiano a sobriedade necessária a uma nova relação com o meio e com os outros. A afirmação de valores «pós-materialistas», o interesse por uma vida regrada, a ética do esforço ligada ao desporto-lazer, as novas culturas alimentares, constituem exemplos dessa retoma de práticas de renúncia para a edificação de uma espiritualidade. Os quadros sociais em que vivemos permitem que tais práticas possam desenvolver-se fora de qualquer relação explícita com uma tradição religiosa. Mas não deixam de ser modos de exercitação espiritual ao serviço de um ideal ou estilo de vida.
O que é a ascese? É um «intervalo», ou talvez um «contra-tempo». Interrompe a dinâmica dos consumos, das trocas, do entesouramento. Por isso, a ascese é sempre exercício e renúncia: exercício, porque se intensificam comportamentos que estariam diluídos noutros contextos; renúncia, porque se exige a privação de práticas, relações ou objetos que são comuns noutros regimes de vida quotidiana. Entramos, pois, num mundo simbólico que se exprime na necessidade de descontinuidades, para que algo de novo, inédito, inesperado, possa surgir.
O que é a ascese? É um «intervalo», ou talvez um «contra-tempo». Interrompe a dinâmica dos consumos, das trocas, do entesouramento. Por isso, a ascese é sempre exercício e renúncia: exercício, porque se intensificam comportamentos que estariam diluídos noutros contextos; renúncia, porque se exige a privação de práticas, relações ou objetos que são comuns noutros regimes de vida quotidiana.
Mesmo sendo uma renúncia voluntária, a ascese tem uma marca de negatividade – o termo «abnegação» pode descrever esse sentido. As restrições e limitações assumidas podem dizer respeito a necessidades básicas e a experiências de prazer muito disseminadas no quotidiano das comunidades humanas. À interrupção, à abnegação junta-se o distanciamento em relação ao regime ordinário da vida. Esse afastamento não se explica a partir de si próprio, mas a partir da abertura que sinaliza: um mundo a restaurar, ou um mundo «por vir».
A ascese mantém, assim, uma particular relação com a morte – neste sentido, a ascese é mortificação. Nas mitologias, os seres que têm a qualidade da imortalidade não são ascetas – ascetas são os mortais. A ascese antecipa simbolicamente a morte, para a integrar na vida. A ascese não deseja a morte. Enfrenta-a, não à distância, expulsando-a da vida, mas num corpo a corpo, dominando e orientando o desejo, com as armas da disciplina.
Enquanto vitória sobre a condição de vulnerabilidade e a morte, a ascese é um substrato religioso estruturante. Homens e mulheres de todas as tradições religiosas vivem tempos e lugares de renúncia. Alguns são especialistas na ascese, transportando permanentemente as marcas dessa luta. Noutros casos, a ascese é uma prática preparatória, um treino em ordem a uma meta, um para-além do lugar em que me encontro, uma via mística. Nega-se este lugar, para alcançar um outro, vencendo o tempo, o espaço, as inércias e a gravidade do corpo.
Podemos ver a ascese como um motor de espiritualização da experiência humana. Mas é interessante sublinhar que o encontro com esse limiar de transcendência se faz através da nossa própria mundanidade, ou seja, através de si próprio enquanto corpo situado. Seguindo uma expressão que usamos correntemente – para definirmos um grau elevado de empenhamento numa ação –, a ascese só acontece «de corpo e alma».
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.