Parece haver algum alarme! Há meninas zangadas, cientistas sobressaltados e adultos a fazer cimeiras. Dizem que aumentam as temperaturas e sobem os mares, que chove onde não deve e não há água onde é preciso, que o calor e o frio não sabem de que terra são e há espécies que se extinguem. Fala-se de biodiversidade e ecossistema, reciclagem e sustentabilidade, do choro da terra e dos pobres, e de tantas outras coisas.
A respeito da ecologia, o Magistério da Igreja, na sua sabedoria profética, tem procurado continuamente resgatar-nos de visões parciais e redutoras. João Paulo II sublinhou a necessidade de «salvaguardar as condições morais de uma autêntica ecologia humana» (Centesimus annus, 38) e convidou-nos a uma «conversão ecológica global» (Catequese, 17 de janeiro de 2001). Bento XVI afirmou que «o livro da natureza é uno e indivisível», e que nele estão incluídos o ambiente, a vida, a sexualidade, a família, as relações sociais, e disse-nos que a «natureza está à nossa disposição, não como “um monte de lixo espalhado ao acaso”, mas como um dom do Criador que traçou os seus ordenamentos intrínsecos dos quais o homem há de tirar as devidas orientações para a “guardar e cultivar” (cf. Caritas in veritate, 48 e 51)». E Francisco, na mesma linha e sem disrupção, convidou-nos a uma «ecologia integral» que não esqueça as dimensões humana e social e relembrou-nos que não há ecologia sem uma adequada antropologia (Laudato sì). Aqui se começa a esboçar uma questão de fundo.
O pensamento moderno procurou afastar Deus do horizonte do homem e do mundo, fechando-o numa dimensão horizontal. A afirmação de Nietzsche, «Deus está morto», é a este respeito significativa. Este «eclipse do sentido de Deus», uma espécie de tentativa de emancipação do homem no seu processo de crescimento até à idade adulta, acaba por reduzi-lo, privando-o de uma dimensão que lhe é essencial e constitutiva: a abertura à transcendência.
No seu «excesso antropocêntrico», o homem deixa de se olhar como oferecido a si mesmo por um Deus criador, com quem estabelece relação, e a partir do qual constitui todas as outras relações. A antropologia moderna, sobrepondo à realidade a razão técnica, põe em causa a possibilidade e a validade do direito natural e faz com que os seres humanos já não aceitem a natureza como norma válida. O homem, dado por Deus a si mesmo, já não se reconhece nesta condição e deixa de respeitar esse dom.
No seu «excesso antropocêntrico», o homem deixa de se olhar como oferecido a si mesmo por um Deus criador, com quem estabelece relação, e a partir do qual constitui todas as outras relações.
Esta é a grande questão ecológica. E é, na sua raiz, uma questão, simultaneamente, antropológica e teológica, pois quando se quebra a relação com o Criador fica fora de lugar também a relação com a criação e com as outras criaturas. Numa justa perspetiva, onde o homem não se cria a si mesmo, mas se descobre criado e administrador de um dom que lhe foi concedido, o respeito pleno da vida está ligado ao sentido religioso e à atitude interior com a qual o homem se coloca em relação à realidade e se considera seu guardador. Não é, por isso, indiferente, se o homem se situa diante da criação como seu absoluto dono ou como seu guardião e administrador.
Em última análise, «se as criaturas forem privadas da sua referência a Deus, como fundamento transcendente, elas correm o risco de estar à mercê do livre arbítrio do homem que pode dispor delas como vemos, fazendo delas um uso desatinado» (Cf. Papa Bento XVI, Homilia, 5 de fevereiro de 2006). Quando Deus perde o seu lugar, tudo fica fora do lugar.
Desta forma, uma renovação ecológica radical e uma «conversão ecológica global», só pode vir do regresso a Deus e do reconhecimento da sua centralidade. A mundividência cristã não concebe a realidade sem Deus, seu fundamento e sua contínua possibilidade de ser. E, para o cristianismo, «acreditar num Deus único que é comunhão trinitária, leva a pensar que toda a realidade contém em si mesma uma marca propriamente trinitária» (Laudato sì, 239). A renovação da relação com a criação só pode vir do regresso a Deus, do reconhecimento da sua marca, e da sua centralidade.
Na perspetiva inaciana, amar a Deus em todas as coisas, e amar todas as coisas em Deus é um princípio ordenador da relação com a realidade e o criado que põe cada coisa no seu devido lugar. Pôr Deus no centro e ordenar a vida e as relações a partir desse eixo estruturador faz com que amemos a partir de Deus e com um amor maior. Sem Deus, amamos menos e amamos pior, quer os outros, quer a restante criação.
Certamente será bom neste Natal estarmos atentos a desperdícios e excessos desnecessários, aos lixos que produzimos e ao papel de embrulho que gastamos, ao consumo das luzes e ao desperdício da água. Será bom não esquecer a gratuidade e o serviço, a generosidade e a partilha com os mais pobres. Mas será ainda melhor olhar o presépio e contemplar no seu coração a figura do Menino que, na sua fraqueza e fragilidade, esconde o seu poder que tudo cria e transforma» (Papa Francisco, Admirabile Signum, 8).
A gruta do Presépio é o sinal de uma verdadeira revolução ecológica. Maria e José, os Anjos e os Pastores, o Burro e a Vaca. Todos ali têm lugar, mas cada um no seu lugar.
E no centro, o Deus Menino.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.