Terminámos há dias mais um Oitavário de Oração pela Unidade dos Cristãos. O tema escolhido, que pedimos emprestado para o título deste texto, reporta-se ao diálogo de Jesus com Marta, que João situa cuidadosamente no espaço – Betânia, onde moravam os três irmãos – e no tempo – quatro dias após a morte de Lázaro (cf. Jo. 11, 17-44). Jesus chega tarde para impedir a morte do amigo, e vê-se confrontado com a dor de Marta e de Maria, que suscita nele uma profunda compaixão. Também Jesus chora, deixando-se tocar pelo sofrimento da perda que abala aqueles que ama. E é essa compaixão que abre o caminho para o restaurar da vida: Jesus ora ao Pai e ressuscita Lázaro.
Mas o excerto escolhido centra-se no diálogo inicial com Marta. É aí que Jesus, perante a aparente censura ou queixa de Marta – “Se tivesses vindo antes, meu irmão não teria morrido…” – a desafia a ir mais longe: “Eu sou a ressurreição e vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá!”. E pergunta-lhe: “Crês nisto?”. E a afirmação e repto de Jesus suscitam em Marta uma bela profissão de fé: “Senhor, eu creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo que veio ao mundo”. Encontramos aqui uma profissão de fé muito próxima daquela que outros evangelistas colocam, noutra ocasião, na boca de Pedro, após o regresso dos discípulos de um tempo de missão. João coloca-a na boca de Marta, na sua atenção muito particular às mulheres e à relação em tudo nova que Jesus inaugura com elas. Como não relembrar a Samaritana, a mulher adúltera, ou mesmo o diálogo que estabelece com a mãe junto à cruz?
Mas interessa-nos aqui este repto, e o modo como ele nos desafia hoje. “Crês nisto?”. Crês que Jesus é de facto a ressurreição e a vida, quando a morte, a perda irreversível, te bate à porta? Crês que Jesus pode e quer retirar-nos dos lugares de morte, que na sua morte ele quer levar as nossas mortes para que permanentemente passemos da morte à vida? Na verdade, acreditar nisto implica jogar a vida toda, aceitar a nossa condição de batizados, relembrar o que diz Paulo e que, todos os anos, proclamamos em cada vigília pascal: se fomos batizados em Cristo, fomos sepultados com Ele na sua morte para ressuscitarmos com Ele para uma vida nova. Ou seja, o nosso percurso é o de um constante renascer, passar da morte à vida. Foi também isso que Jesus disse a Nicodemos, ao lembrar-lhe como era urgente nascer de novo (Jo. 3, 1-8). Um caminho interior, de passarmos da obscuridade para a luz, de fazermos morrer o que em nós é morte para vivermos plenamente ao jeito de Jesus. Mas também um caminho em Igreja e com os outros, em ordem à construção do mundo. Não é este o desafio do caminho sinodal, proposto pelo papa Francisco? Não é este também o repto subjacente à Laudato si’ e à Fratelli tutti, a de um mundo renovado, na escuta dos mais pobres e da terra, na promoção e respeito pela dignidade humana e de relações de fraternidade entre todos os homens e mulheres de boa vontade?
Na verdade, acreditar nisto implica jogar a vida toda, aceitar a nossa condição de batizados, relembrar o que diz Paulo e que, todos os anos, proclamamos em cada vigília pascal: se fomos batizados em Cristo, fomos sepultados com Ele na sua morte para ressuscitarmos com Ele para uma vida nova. Ou seja, o nosso percurso é o de um constante renascer, passar da morte à vida.
Importa ainda convocar uma outra dimensão do tema escolhido, que se liga à memória do passado e à construção da unidade entre os cristãos. Com efeito, 2025 sinaliza os 1700 anos sobre a convocação do Concílio Ecuménico de Niceia (325). Reunindo cerca de 300 bispos e representantes das Igrejas então existentes, coincidentes em larga medida com o espaço do Império Romano, e já num contexto de reconhecida cidadania do Cristianismo após um período marcado por frequentes e por vezes sangrentas perseguições, esta magna reunião, convocada pelo imperador Constantino, procurou a unidade possível entre Igrejas com tradições teológicas e litúrgicas muito diversas, tanto na definição de uma comum profissão de fé como na harmonização das distintas datas escolhidas para a celebração da Páscoa. Urgia que as Igrejas definissem o que era essencial na profissão de fé no Deus revelado em e por Jesus, num contexto de expansão do Cristianismo e no confronto com linguagens e culturas muito diversas e seguramente diferentes dos ambientes judaicos em que o movimento de Jesus se iniciou. Era preciso conservar o essencial da fé recebida e torná-lo percetível para os seus contemporâneos, face a outras teologias, como a do arianismo.
Ao celebrarmos os 1700 anos sobre Niceia e num ano em que, por feliz coincidência, os cristãos celebram a Páscoa no mesmo dia, é importante interrogarmo-nos sobre a credibilidade do nosso anúncio e do nosso testemunho. No que acreditamos hoje? Como falar de Jesus a um mundo secularizado, plural nas suas expressões culturais mas também religiosas, com tantos desafios emergentes? Como dizer a nossa fé? Como dar corpo às intuições profundas do Cristianismo neste nosso tempo? E como construir a unidade do essencial, num Cristianismo também plural, de modo que o anúncio de Jesus seja efetivamente uma fonte de alegria e de renovação do mundo? Continuamos a procurar ainda os caminhos para uma definição unânime da data de celebração da Páscoa e, mais do que nunca, percebemos como é urgente multiplicarmos os lugares e as ocasiões onde a presença dos cristãos seja unânime e feliz.
O diálogo de Jesus com Marta relembra-nos que o essencial, contudo, reconduz sempre ao encontro com Cristo, à experiência de que só o seu amor, porque só a sua Páscoa, nos permite passar da morte à vida, de páscoa em páscoa, até à Páscoa definitiva. Seja ela a nossa ou a do mundo, no advento definitivo dos novos céus e da nova terra. “Crês nisto?” joga-se no “Queres viver isto?”. Será seguramente o nosso testemunho e das comunidades em que nos inserimos, na experiência da escuta, da oração, da partilha, da fraternidade, do anúncio, do acolhimento do outro, que nos permitirá fazer nossa para os outros, com verdade, a pergunta de Jesus: “Crês nisto?”. Que Marta e tantas outras mulheres do Evangelho, sinais desse acolhimento disponível e amoroso da novidade de Jesus, nos ensinem o caminho para esta vida renovada, esta capacidade de nascer de novo, todos os dias, e levar aos que nos rodeiam, a começar pelos mais frágeis e mais pobres, o bálsamo da consolação e a força do amor que reergue e cura.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.