Os que viveram liturgicamente as celebrações da Semana Santa tiveram a oportunidade de testemunhar um acontecimento singular na ritualidade católica: a leitura integral de uma narrativa da Paixão. Detenho-me um pouco sobre esta prática de leitura, que conhecemos no Domingo de Ramos e na Sexta-Feira Santa para chegar a uma proposta de compreensão da fé cristã como narrativa – os cristãos têm uma história para contar.
O evangelho narrado
Alguns liturgistas sublinham que aquela leitura a várias vozes não é, como acontece na habitual estrutura da Liturgia da Palavra, uma proclamação, mas antes uma narração. Não me interessa tanto a discussão sobre esta distinção, que remete para as condições de autoridade dos que dão voz ao ato de ler em contexto litúrgico. Interessa-me mais explorar esse espaço que se abre para a experiência de «narrar», enquanto lugar que permite, na sua universalidade e no seu enraizamento biográfico, um encontro com o quotidiano e a biografia dos que se querem implicar naquela leitura.
Desde o século IX que encontramos o rasto, nos evangeliários, de uma certa polivocalidade na entoação das narrativas da Paixão, em contexto litúrgico. Nesses evangeliários, descobrimos sinais alfabéticos que se distribuem pelas vozes do narrador, de Jesus e dos outros actantes das narrativas da Paixão. São sinais que dão indicações relativas ao tipo de entoação: c («celeriter») aconselhando fluidez para as palavras do narrador; t («tenere») para as palavras de Jesus, conferindo-lhe um carácter grave; s («sursum») indicando que a entoação das palavras de outros intervenientes na narrativa deveria desenvolver-se num registo mais agudo. Em muitos destes casos, não podemos reconstituir com segurança as diversas práticas. Mas estamos perante uma via de valorização da dimensão narrativa dos evangelhos da Paixão. Testemunhos posteriores irão documentar um certo desenvolvimento musical relativo às palavras coletivas, incremento que acompanha a emergência de práticas polifónicas na liturgia latina. Sabemos onde nos levará este desenvolvimento – à constituição da Paixão como acontecimento musical. Desde as formas preponderantemente monódicas, até às realizações mais diversificadas – aquelas em que a voz do Evangelista e a de Jesus se apresentam na simplicidade narrativa da monodia, reservando a dramaticidade da polifonia para as «turbae» e os outros «soliloquentes». Quem pôde, nesta quadra pascal, voltar a ouvir uma das Paixões de Bach, conhece um ponto culminante desta história.
Mas não é sobre música que, em primeira linha, estou a escrever. Estas práticas podem ser vistas como abertura do texto sagrado à possibilidade de ser narrado. Ou seja, lido como um tecido de lugares, actantes, emoções, expectativas e surpresas. A Escritura santa dos cristãos não é redutível ao plano de um Livro venerado, pronunciado ritualmente. A aproximação ao texto enquanto «narrativa» abre um campo de possibilidades múltiplas para a implicação do leitor. As práticas musicais não são apenas uma estratégia de solenização. A retórica musical apela ao lugar do corpo (voz), à valorização da presença (espaço), à expressividade emocional (afeto).
Um lugar na trama evangélica
São vários os teólogos cristãos que têm procurado sublinhar o carácter narrativo da fé cristã. Essas leituras tendem a valorizar a afinidade que existe entre a fé cristã e a historicidade da experiência humana – da longa duração histórica à micro-história dos quotidianos, o apelo da narrativa é inegável. O filósofo e cristão reformado Paul Ricœur fez o elogio dessa afinidade entre a história salvífica, bíblica e cristã, e a experiência do relato. Interessou-lhe particularmente o facto de a narrativa implicar um jogo de liberdades. A narrativa desafia-nos a tomar parte, a decidir por um lugar naquela trama. As parábolas evangélicas são um bom exemplo. É certo que são narrativas abertas que pretendem ter um efeito persuasivo sobre os auditores/leitores, mas enquanto narrativas abertas, desenham um espaço da liberdade.
Narrativa é, por isso, a fé dos cristãos. Narra-se certamente a memória atuante de Jesus. Mas narra-se também a forma como essa memória se tece na «micro-história de salvação» que cada um transporta. Grande parte do fracasso de alguns modelos de cristianização ou evangelização poderá explicar-se pelo facto de se ignorar que as pessoas têm uma história para contar e que cada fio dessa história pode dialogar com a trama do evangelho de Jesus (estou a pensar, em particular, naquilo que, no mundo católico, se designa de catequese de adultos). Reconhecemo-nos na narrativa porque somos narrativa – feita de vulnerabilidades, ausências, desejos e promessas.
O quinto evangelho
Quando, em projetos teológicos, se procura aceder à experiência crente a partir de métodos biográficos, recolhendo narrativas de si por meio de entrevistas, deparamo-nos com um autêntico laboratório onde se tecem sentidos. Esses fios de singularidades integram a trama («intriga») da fé. Não de uma forma concordista. Nem como um «talk show». As linguagens da fé, na sua criatividade própria, convivem bem com o silêncio, e abrem uma brecha inesperada no mundo da vida – são «intrigantes». Podem aquela palavra em contramão que suscita perguntas – por vezes ainda não enunciadas – e interpreta os enigmas da nossa vida.
Talvez tudo o que tentei esboçar se possa resumir na reflexão que encontramos na II Carta aos Coríntios (3, 3) – essa apresentação dos cristãos como a carta de Jesus Cristo, escrita não em pedra, mas no coração. Por isso, Alain Marchadour fala de um quinto evangelho, aquele que se escreve nas vidas dos leitores: «Quando um livro já não é lido, morre. Enquanto os homens e as mulheres continuarem a ler a Bíblia ensaiando juntar mais uma página, a Escritura permanecerá como Livro da Vida».
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.