Contra o distanciamento

Talvez a cristalização de um sentimento aconteça de forma mais durável na exposição a uma imagem do que a um discurso. O confronto com uma fotografia pode ser mais impressivo que o impacte causado pelas palavras.

À medida que a vaga pandémica se abateu sobre as nossas sociedades hiper modernas, o espaço público foi conhecendo transformações. Com o alargamento do “mundo em casa”, respondendo a novos imperativos morais e sanitários, os espaços domésticos implicaram-se, numa escala diferente, na construção da cena pública, com uma utilização intensiva dos media sociais. Esse “mundo em casa” é um mundo de circulação de imagens que, de forma algo caótica, se afirmou como a única paisagem disponível. No deserto do seu confinamento, muitos cidadãos encontraram, no pluriverso dos media, a única janela para o mundo.

Uma parte do que vivemos, neste tempo crítico, será transmitido como imagem. Em movimento, ou fixando o instante, essas imagens operam como técnicas de fixação da memória. Mas, enquanto código visual, a fotografia desenvolve também a suposição de que estamos perante personagens. Essa ambiguidade da fotografia, num jogo de aproximação e distanciamento, deixa-nos numa hesitação: trata-se de uma poluição visual, que nos insensibiliza à dor e à injustiça, ou devemos falar de ecologia das imagens, que permite dar protagonismo ao lado B da nossa história?

Em 1976, no seu livro On Photography, Susan Sontag engrossava o coro daqueles que criticavam a “sociedade do espetáculo” ou a “cultura do simulacro”, segundo as expressões de Guy Debord e de Jean Baudrillard. Na altura, vários intelectuais concluíam que a crescente difusão de imagens revoltantes minava a nossa capacidade de indignação. Nessa altura, desconfiava-se do sentimentalismo humanista – poderia uma fotografia produzir um conhecimento ético ou político?

No seguimento de Susan Sontag, outros chamaram à atenção para um risco paradoxal: o fluxo linear de imagens do real conduz à sua invisibilidade. Recordo aqui uma personagem de um livro de Gonçalo M. Tavares – Uma menina está perdida no seu século à procura do pai. Fried Stamm percorre a Europa a colar cartazes e fotografias de grande formato. No entanto, ele escolhe sempre vias secundárias, onde as suas imagens não têm de concorrer com a publicidade, perante o passo apressado dos transeuntes. Escolhe os lugares onde as imagens podem ser inesperadas, onde os que caminham têm o olhar mais disponível para as ver. Fried Stamm sabe que os olhares já não olham, surfam de imagem em imagem e nada vêem.

A reflexão sobre a imunidade às imagens é necessária. Mas importa não perder de vista, no entanto, que a nossa cultura de espetadores não neutraliza necessariamente a força moral das imagens.

A reflexão sobre a imunidade às imagens é necessária. Mas importa não perder de vista, no entanto, que a nossa cultura de espetadores não neutraliza necessariamente a força moral das imagens. Na história contemporânea, o repositório de imagens do sofrimento é uma parte decisiva da nossa cultura: as gravuras de Goya, retratando as guerras napoleónicas (1810-20), a Guerra da Crimeia (1853-56), a Guerra Civil Espanhola (1936-39), o chamado “Álbum de Auschwitz” (que se encontra no Museu Yad Vashem de Jerusalém), as imagens dos surtos da fome em África e na Ásia (1950-70), até aos cenários de sofrimento e morte associados aos diversos trânsitos de populações deslocadas, já no século XXI. A essas imagens, juntaremos as fotografias de profissionais de saúde com o rosto vincado pelas máscaras hospitalares, armazéns de caixões, onde vítimas mortais da COVID-19 aguardam o seu destino fúnebre, ou a fotografia de um Papa só, na Praça de São Pedro, mas em comunhão íntima com a humanidade.

Talvez a cristalização de um sentimento aconteça de forma mais durável na exposição a uma imagem do que a um discurso. O confronto com uma fotografia pode ser mais impressivo que o impacte causado pelas palavras. Estas ajudam à compreensão, mas não nos perseguem, como as fotografias – anotava Susan Sontag. Face ao atual arquivo de imagens, ninguém tem o direito de ignorar o sofrimento dos outros, ninguém pode esquecer que o sofrimento do outro existe. As imagens podem, de facto, tornar-se uma forma de evitamento, quotidianizando e banalizando o sofrimento, “servido à hora do jantar”. A presença de um olhar crístico, na nossa cultura, será um contributo decisivo para construção de uma ética do olhar, contra o distanciamento, que vá para além de uma estética do sofrimento à distância: o rosto do outro é sempre próximo, porque sacramento de Deus.

 

Fotografia: Madalena Meneses

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.