Neste tempo estival, entre o repouso e as vivências familiares, trabalhei sobre discursos de grandes caminheiros e sobre narrativas dos chamados «novos peregrinos». No começo das leituras, regressei a um texto de Milan Kundera, A Lentidão: «Porque terá desaparecido o prazer da lentidão? Ah, onde estão os deambuladores de outrora? Onde estão esses heróis indolentes das canções populares, esses vagabundos que preguiçam de moinho em moinho e dormem ao relento? Terão desaparecido com os caminhos campestres, com os prados e as clareiras, com a natureza? Há um provérbio checo que descreve a sua ociosidade por meio de uma metáfora: contemplam as janelas de Deus». Nesta exploração de múltiplos relatos, interessava-me ler, num mesmo arco simbólico, a experiência da caminhada como desporto-lazer e a prática da caminhada como peregrinação (de alguma maneira, torna-se quase inevitável recordar o antropólogo André Leroi-Gourhan: o ser humano começa pelos pés).
Nesse contexto de interceção, entre a caminhada e a peregrinação, descobre-se um corte provisório com os valores que metrificam o quotidiano, procurando uma reserva interna de experiência que valorize a descoberta de si, a relação com os outros e a fruição do meio – trata-se, portanto, de um exercício espiritual. Por um lado, encontramos sinais de uma espiritualização da experiência da caminhada, sem a convocação explícita de signos religiosos. Por outro, as práticas de peregrinação pedestre recolhem interesses que não se circunscrevem ao plano devocional, mas se abrem a significações mais universais, próprias do Homo viator. Trata-se de um movimento de aproximação entre práticas diversas: a espiritualização da caminhada e a secularização («mundanização») da peregrinação.
Os pés servem cada vez menos para andar, desde os anos 50 e 60 do século passado. Passaram a ser usados, com mais frequência, para manipular dispositivos de controlo de viaturas – também essa função se rarefaz agora, em função das mudanças tecnológicas. Esta falta de conexão muscular com o meio, na perspetiva do antropólogo David Le Breton, pode fragilizar o enraizamento corporal da existência, processo em que se associam duas derivas: o corpo torna-se um anacronismo, a existência perde o centro de gravidade.
Os pés servem cada vez menos para andar, desde os anos 50 e 60 do século passado. Passaram a ser usados, com mais frequência, para manipular dispositivos de controlo de viaturas – também essa função se rarefaz agora, em função das mudanças tecnológicas.
As ruas, em muitas áreas residenciais, estão vazias de caminhantes. Os que subsistem podem ser agora acompanhantes de animais domésticos, no seu passeio higiénico, ao lado de veículos motorizados. Nos lugares múltiplos da modernidade, os humanos, na sua condição pedestre, disputam o espaço, numa luta difícil, com os dispositivos automóveis. A procura de atividades e contextos de compensação é, neste caso, um sintoma dessa perda de relação com o meio. Em ginásios e salas performativas de todo o género, compensa-se com intensidade o enfraquecimento da experiência do corpo caminhante. Andar, mas também correr ou pedalar, sem sair do sítio, são atividades ao serviço de uma «forma» corporal em rutura com o mundo – como que uma ascese sem transcendência.
Caminhar pode, assim, veicular sentidos de resistência. Resistência, antes de mais, ao ritmo nivelador do trabalho, que invade todos os tempos do quotidiano. Na errância e na lentidão, próprias da caminhada, vive-se a experiência da rutura instauradora de um tempo novo, com as características próprias de um tempo ritual. A caminhada é uma experiência da gratuidade, uma experiência sensorial total e um ensaio silencioso de reencantamento do mundo. A lentidão descreve a condição temporal da caminhada. O corpo e o desejo do caminhante são a métrica do tempo – o mundo é convertido às proporções do corpo humano.
O trilho da caminhada/peregrinação pode ser visto, também, como memória, gravada nas nervuras do solo, de incontáveis caminhantes que, ao longo do tempo, habitaram, nessa condição, um percurso pedestre – pode falar-se de uma solidariedade geracional tatuada na paisagem. Os trilhos ou os caminhos de peregrinação são marcas de humanidade, cicatrizes na terra. A atividade pedestre permite o contacto com uma biblioteca infindável, no cruzamento de paisagens e palavras. Esta imersão é o lugar de uma experiência que se narra, tanto na caminhada (como desporto-lazer) como na peregrinação pedestre, a partir dos imaginários do renascimento. Em alguns discursos, este renascimento traduz-se numa narrativa explicitamente terapêutica – andar para curar (salvar).
O silêncio pode ser um dos marcadores mais distintivos da experiência da caminhada/peregrinação. Não o silêncio higienizado dos espaços que se protegem do ruído, mas o silêncio como modalidade de significado. O silêncio é aqui uma fronteira entre a espessura do som do mundo e a interioridade humana. Neste caso, o mais sensorial é também o mais interior. O mais superficial pode ser o mais profundo. O caminheiro toma os trilhos secundários para descobrir o espetáculo do mundo sem o tumulto do quotidiano. Dessa experiência, fará uma reserva de significado, uma força interior para retornar ao seu habitat ordinário. O silêncio povoou de diferentes formas a nossa geografia: o campo, o mosteiro, o campanário, ou o silêncio do jardim. Na experiência da caminhada, o meio torna-se, ele próprio, o santuário. Tal como o claustro pode ser o símbolo paradoxal de uma abertura para o divino, também o trilho pode ser vivido como uma brecha no mundo, que o abre para a transcendência.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.