Numa conferência sobre inovação em educação, um tecnólogo da universidade do Minho que trabalha em ciência de ponta disse que, em matéria educativa, é um “conservador pois acredita na importância das ciências básicas”. Meti-me com ele e esclarecemos a questão. Mas fiquei a pensar como geralmente vemos as coisas da educação de modo dicotómico. Educação tradicional vs. educação progressista; gosto de aprender vs. esforço para aprender; saberes vs. competências; os exames valem tudo vs. os exames não valem nada; chumbar muito vs. não reprovar ninguém.
Estas discussões, de tudo ou nada, isto ou aquilo, não têm sentido. O sistema de ensino português é composto por mais de 1.600.000 alunos, em quase 9.000 escolas, com mais de 150.000 professores. Todos os dias decorrem em Portugal cerca de 380 000 aulas que representam outras tantas horas de interacção entre professores e alunos. Do Minho ao Algarve. Como é fácil de ver, defender que há soluções únicas para todas as situações é pura demagogia.
Aquilo que é uma boa solução no caso do Joaquim, filho único de um comerciante e uma doméstica, que frequenta uma escola em Portalegre, pode ser uma péssima solução no caso da Maria, mais nova de três filhos de uma advogada e de um funcionário bancário que frequenta uma escola em Leiria. A complexidade do sistema educativo, as exigências que são feitas às escolas e o nível de qualificação já atingido pela sociedade portuguesa tornam a resolução dos problemas que ainda temos muito mais complexa do que antes.
O grande esforço educativo dos anos 80 e 90 foi construir escolas e contratar professores (fossem habilitados ou não pois nessa altura a taxa da população ativa com o ensino secundário completo era muito inferior a 10%). Depois, foi ir aumentando a escolaridade obrigatória. E isto foi muito importante. Mas para isto ser possível, porque as qualificações das pessoas que tínhamos disponíveis para serem contratados como professores eram muito baixas (os licenciados em geral eram advogados, médicos, arquitetos, engenheiros, economistas, quadros das empresas), tivemos de criar um currículo muito prescritivo, definido centralmente, que era “passado” na aula o melhor que o professor sabia e podia. É neste ponto que alguns leitores mais grisalhos dizem: “O quê!? Os meus professores do secundário eram pessoas muitíssimo cultas e conhecedoras”. Pois eram. Mas esquece-se o caro leitor que na sua altura só havia 13.500 alunos no ensino secundário e apenas 13% dos portugueses com 15 anos estavam na escola.
Hoje, o secundário tem mais de 350.000 alunos e 99,7% dos jovens de 15 anos estão na escola. Na sua altura, não havia mais de 5.000 professores do ensino secundário e eram a nata da profissão. Hoje, são mais de 60.000. E o caro leitor ia à escola numa capital de distrito (único sítio onde havia escola secundária). Hoje, há escolas secundárias em todas as cidades. A dinâmica dessa escola era simples: o professor dá a matéria; o aluno é testado na matéria; se consegue demonstrar que aprendeu passa para a matéria seguinte; se não consegue demonstrar que aprendeu fica onde está e volta a ouvir a matéria até que a aprenda. Isto não é bom nem é mau. É o sistema que construímos com os recursos que tínhamos na sociedade que éramos. Havia “os que serviam para a escola e os que não serviam para a escola”. E o modo mais eficiente de funcionar a “escola filtro” era com exames de quando em quando e chumbos sempre que o aluno não cabia no molde.
Algures nos anos 80, ganharam força em Portugal teorias pedagógicas que combatiam este estado de coisas em nome de uma maior justiça social. A ideia fundamental era que a escola perpetuava as desigualdades sociais pois estava feita para beneficiar os filhos dos ricos e expulsar os filhos dos pobres. Colada a esta ideia havia outra que era a de que a escola, e em especial os professores, deveriam motivar os alunos para a aprendizagem, dar exemplos do mundo real, ensinar coisas úteis. O ensino deveria ser centrado no aluno e não no professor. Foi nesse momento que se formaram dois exércitos que desde então se degladiam no campo de batalha da educação: os conservadores (que, alegadamente, defendem um ensino expositivo, baseado em factos, com memorização, exames e chumbos) e os progressistas (que, alegadamente, defendem um ensino em que o professor é menorizado, baseado em competências, menos exigente e com passagens administrativas). E é à luz desta dicotomia simplista que se discute educação. É por isso que temos a impressão de que não vamos a lado nenhum (e vamos certamente muito mais devagar do que deveríamos).
A discussão sobre as retenções é um bom exemplo de como a discussão está desfocada e baseada em percepções antigas sobre o que é a escola. Para uns, os chamados conservadores, proibir a retenção de alunos é uma medida de facilitismo que promove a ignorância e baixa o nível das escolas. Para outros, os chamados progressistas, reter alunos é uma violência sobre as crianças e não resolve nada devendo ser proibido. Parece-me que ambos têm razão. E ambos não a têm. É que cada campo faz esta discussão atacando o outro em vez de atacar o problema. E o problema é que às vezes há alunos que não aprendem aquilo que queríamos que tivessem aprendido e que é importante aprenderem.
Antes de se propor uma solução para o problema, é fundamental perceber porque é que aquele aluno não aprendeu aquela coisa (ou não desenvolveu aquela capacidade). Reter o aluno só porque ele não aprendeu algo que queríamos que tivesse aprendido não é solução! Se ele não aprendeu este ano, porque é que haveria de aprender no ano que vem? Se vai ter o mesmo professor, o mesmo programa e a mesma metodologia, as hipóteses de vir a aprender são pouco maiores do que eram no ano anterior. Aliás, e é isto que as estatísticas nos mostram, os alunos não melhoram a aprendizagem pelo facto de serem retidos. Mas fazer progredir um aluno que não aprendeu o que tinha de aprender e esperar que ele faça as aprendizagens seguintes ao mesmo tempo e do mesmo modo que os que aprenderam as anteriores também não é solução.
É assim como lançar para fora de pé alguém que está a aprender a nadar mas ainda não consegue boiar só porque já esteve algum tempo na piscina pequena. A solução não está em reter ou não reter o aluno. A solução está no que fazemos com o aluno no ano seguinte. E as soluções serão tantas quantos os alunos de que estamos a falar pois a solução dependerá da circunstância concreta de cada caso (e dos diferentes conhecimentos e capacidades dos professores).
A discussão sobre as retenções é parecida com a discussão sobre os conhecimentos e as competências. São ambas estremadas e passam ao lado dos verdadeiros problemas.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.