Scott-King’s Modern Europe é uma famosa novela de Evelyn Waugh, escritor inglês do século XX, publicada pela primeira vez em 1947. Scott-King é um professor de Clássicos em Granchester, um colégio decente, mas fora de moda, em Inglaterra. Tudo na sua descrição parece datado e pouco interessante, até a paixão que o entretém nos tempos livres por um poeta obscuro de um pequeno país pouco relevante – Neutrália. É, por isso, com uma enorme surpresa e alguma incredulidade que Scott-King recebe um convite oficial para viajar até Neutrália e participar nas comemorações do tricentenário do dito poeta. Apesar de muitas hesitações, Scott-King acaba por decidir aceitar o convite e aventurar-se na viagem de uma vida. A este ponto, como nota George Orwell na recensão que fez deste texto, o leitor experiente de Waugh já está mesmo a ver que as coisas não vão correr bem ao pobre Scott-King. E, naturalmente, a viagem é um desastre do princípio ao fim. A comemoração não era mais que uma operação de propaganda política e Scott-King um peão num jogo que não queria nem sabia como jogar. A Europa Moderna que Waugh satiriza com Neutrália e a sua ditadura é em alguns pontos infelizmente familiar. Corrupto, movido a propaganda, Neutrália é um país onde nada funciona da forma como esperaríamos – ou, na verdade, como esperaríamos se esperássemos que as coisas funcionassem de forma racional, coisa que deixa de acontecer rapidamente. Sem conseguir sair do país, o professor pouco aventureiro vive peripécias com que nunca sonharia na tentativa de escapar, acabando nu num campo para imigrantes judeus ilegais na Palestina, onde um antigo aluno o reconhece finalmente. De volta a Granchester, o director informa Scott-King que o número de alunos de clássicos está a diminuir depressa e aconselha-o a dedicar-se também a qualquer coisa mais actual:
– Sabe, disse ele, que estamos a começar este ano com menos 15 alunos de clássicos do que tínhamos no período passado?
– Eu supus que seria mais ou menos esse o número.
– Você sabe que eu também sou um homem dos clássicos. Deploro-o tanto quanto você. Mas o que se há de fazer? Os pais já não estão interessados em produzir o homem completo. Querem qualificar os seus rapazes para empregos no mundo moderno. Não podemos propriamente culpá-los, pois não?
– Oh sim, disse Scott-King. Posso e culpo.
– Eu digo sempre que você é um homem mais importante que eu aqui. Não se pode conceber Granchester sem Scott-King. Mas já lhe ocorreu que pode chegar um dia em que não há nem um rapaz de clássicos?
– Oh sim. Várias vezes.
– O que eu ia sugerir era… Pergunto-me se consideraria dar outras disciplinas além dos clássicos. História, por exemplo, de preferência história económica?
– Não, senhor director.
– Mas, sabe, pode estar a chegar aí uma espécie de crise…
– Sim, senhor director.
– Então, o que intenciona fazer?
– Se o senhor aprovar, senhor director, vou continuar aqui enquanto houver um rapaz que queira aprender clássicos. Penso que seria realmente perverso fazer qualquer coisa para capacitar os rapazes para o mundo moderno.
– Isso são vistas-curtas, Scott-King.
– Aí, senhor director, com todo o respeito, eu discordo profundamente de si. Penso que esta é a visão mais abrangente que é possível ter.
Educar não é limar as arestas de crianças e adolescentes até eles entrarem perfeitamente num qualquer molde politicamente correcto da moda da altura.
Pode-se gostar mais ou menos da personagem de Scott-King e pode-se simpatizar mais ou menos com o humor às vezes cruel do autor Evelyn Waugh. Mas esta última fala é para ser levada a sério.
Quase meio século depois, em 1999, o filósofo Alasdair MacIntyre, numa entrevista que deu à revista Cogito, termina uma resposta com uma frase praticamente idêntica. Depois de descrever aquilo que lhe parece importante ao desenhar um currículo escolar, conclui: “Claro que uma educação deste tipo requereria uma alteração muito grande nos nossos recursos e prioridades, e, se bem-sucedida, produziria nos nossos alunos hábitos de mente que os incapacitariam para o mundo contemporâneo. Mas incapacitar os nossos alunos para o mundo contemporâneo devia, em qualquer caso, ser um dos nossos objectivos educacionais.”
Pode-se conversar muito sobre a pertinência das sugestões curriculares de MacIntyre que não descrevo aqui, ou sobre a pertinência de um modelo tradicional de educação ou os seus limites. Mas o mais importante que me parece sair da combinação destes dois pequenos excertos não são essas discussões. O que eu queria começar por sublinhar destas duas intervenções um tanto contra-intuitivas na linguagem contemporânea é o verbo que os autores usam nos seus textos, e que é muito mais elegante no original do que nas minhas traduções um tanto apressadas: “to fit”.
“I think it would be very wicked indeed to do anything to fit a boy for the modern world”, diz o professor de Waugh; e “But to unfit our students for the contemporary world ought in any case to be one of our educational aims” diz MacIntyre. Na verdade, “to fit” ou “to unfit” é mais interessante do que capacitar ou incapacitar. Na versão original do verbo está também incluída a ideia de encaixar-se, de servir, de caber. Como uma peça de roupa.
Encaixar no mundo como umas calças que servem bem, que não apertam nem caem, e de preferência onde não se tem de fazer bainhas. Percebo que como pais tenhamos este desejo para os nossos filhos, ou como sociedade para os nossos jovens. Mas a que custo?
E, ao mesmo tempo, uma educação verdadeiramente cristã não pode excluir-se de um compromisso com o mundo, exactamente com esse mundo para o qual des-prepara, um compromisso de o acolher e o amar, que é muito diferente e muito mais do que meramente tolerar.
Sucesso à primeira. Reconhecimento imediato. Ser perfeitamente capaz de dizer aquilo que todos querem ouvir a cada momento. Não fazer ondas. Estar no mundo confortável, como numa segunda pele. Não pode ser o objectivo de uma educação, muito menos de uma educação cristã. Não o foi no tempo de Abraão, não o era no tempo de Jesus, e continua a não ser agora. Repare-se, não é (só) um problema do mundo de hoje. Não é (só) que hoje haja tantas coisas erradas na forma como nos relacionamos, tantas mentiras espalhadas como verdades intocáveis, que seguir Jesus implica uma certa dimensão de recusa do mundo, no sentido do mundano. Já era assim. Vemo-lo na história dos profetas, vemo-lo na história de Jesus, vemo-lo na história dos primeiros cristãos e continuamos a vê-lo na história da Igreja, seja nas vidas de santos, seja nas vidas de tantos cristãos anónimos.
Educar não é limar as arestas de crianças e adolescentes até eles entrarem perfeitamente num qualquer molde politicamente correcto da moda da altura. É des-preparar para o mundo, para que o desejo de verdade não se anestesie com soundbytes, para que o desejo de bem não adormeça com likes, para que o desejo de beleza não se perca em instastories. Para que pensar não seja só repetir.
E, ao mesmo tempo, uma educação verdadeiramente cristã não pode excluir-se de um compromisso com o mundo, exactamente com esse mundo para o qual des-prepara, um compromisso de o acolher e o amar, que é muito diferente e muito mais do que meramente tolerar. Um compromisso de serviço e misericórdia, de amor na verdade. Educar assim é des-preparar e enviar – como cordeiros para o meio de lobos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.