Algumas coisas que parecem muito antigas
são invenções de anteontem.
Algumas coisas que parecem ser novidades perigosas
são formas tradicionais de sabedoria antiga.
Serve este texto para apresentar o livro Uma Igreja transformada pelo povo, publicado pela Paulinas Editora, em 2023, e recomendar vivamente a sua leitura. Sendo um livro pequeno e acessível, mostra-se de grande alcance para quem tenha a peito o momento presente da Igreja e a sua missão no mundo atual. O original francês, de 2020, tem por título Transformer l’Église. Quelques propositions à la lumière de Fratelli Tutti. Trata-se de uma obra coletiva, escrita a várias mãos, por um grupo de amigos oriundos de áreas de formação e profissionais tão diversas como a política e os negócios, a psicologia e a terapia familiar, entre várias outras, que partilham a mesma fé cristã. A coordenação é de Michel Camdessus, economista ligado à banca, e de Hervé Legrand, teólogo dominicano, especialista em eclesiologia. A edição portuguesa é enriquecida com a apresentação do teólogo-liturgista italiano Andrea Grillo.
«Revoltados», como confessam logo na primeira página, «pela revelação da pedocriminalidade nas fileiras do clero», procuram explorar o diagnóstico feito pelo Papa Francisco sobre o tema dos abusos, na sua Carta ao povo de Deus, de 20 de agosto de 2018, onde aponta o clericalismo como raiz. «Subscrevemos completamente o juízo do Papa Francisco, que considera que os abusos levaram à identificação de uma crise muito mais profunda, a do funcionamento clerical e autoritário da Igreja que persiste ainda, meio século depois do Vaticano II. Esse funcionamento perverte a sua natureza profunda e perturba a sua relação com a sociedade». Partilhada tanto por clérigos como por leigos, o clericalismo é uma mentalidade «que faz equivaler a Igreja ao clero; vê na submissão à hierarquia uma característica maior do catolicismo e, mais grave ainda, santifica indevidamente a pessoa dos sacerdotes e exonera os responsáveis eclesiais da prestação de contas». Muito longe de assentar na fé partilhada pelos cristãos, um tal estado de coisas já provou «ser moralmente perigoso para os detentores de poder espiritual».
A partir do quadro francês, a reflexão crítica que estes autores oferecem sobre a Igreja e a sociedade deixa-se iluminar intencionalmente pelo magistério do Papa Francisco, que entendem dever ser compreendido corretamente. «Contrariamente ao que alguns lhe censuram – afirmam numa passagem significativa –, ele não pretende conformar a Igreja a este mundo. É bem o inverso: ele combate um modelo bastante humano de exercício da autoridade na Igreja, esperando deste modo promover a fraternidade na Igreja e também no mundo». A mundanidade, a que Francisco se refere continuamente, não está simplesmente fora, no mundo, mas há que reconhecê-la dentro da Igreja. Correspondendo a um «modelo bastante humano», demasiado humano, «de exercício de autoridade» assente na distinção substancial entre clero e leigos, como se o sacramento da ordem fosse superior ao sacramento do batismo, e na «submissão à hierarquia», gera e mantém a autorreferencialidade da Igreja, retirando-lhe fôlego espiritual e vitalidade evangélica e deixando-a incapaz de relações fecundas e de presença profética no mundo em que vive. Tendo-se tornado tão estrutural, refere Grillo na sua apresentação, o tema da autoridade e do poder, entendido segundo o modelo clerical, não pode ser contornado «com uma “reviravolta espiritual” que transforme, de uma só vez, todo o poder em serviço. É aqui precisamente que reside uma transição muito delicada que o livro torna clara até à evidência: ao risco do clericalismo só se pode responder com uma “partilha de poder”». Ora, «a forma eclesial desta partilha é, antes de tudo, a “sinodalidade”, que é o “método jurídico” de participação na autoridade». Por isso, «a única saída do clericalismo consiste em ativar, ampla e profundamente, a lógica sinodal, no modo como a Igreja toma decisões, realiza discernimentos, promove, trabalha e perdoa». Percebemos daqui quanto é relevante para a vida e a missão da Igreja o sínodo em curso sobre sinodalidade.
«Contrariamente ao que alguns lhe censuram – afirmam numa passagem significativa –, ele não pretende conformar a Igreja a este mundo. É bem o inverso: ele combate um modelo bastante humano de exercício da autoridade na Igreja, esperando deste modo promover a fraternidade na Igreja e também no mundo».
Os títulos das três primeiras partes do livro são claros quanto aos temas e aos propósitos: “Para a transformação da Igreja”; “Para uma transformação fraterna do mundo”; “Para uma Igreja sinodal e fraterna”. Aqui, gostaria de destacar a quarta e última parte, escrita por Hervé Legrand, e recomendar, uma vez mais, a leitura. Intitula-se “Procurar inspiração na tradição – notas históricas e teológicas”. Trata-se de uma breve, mas muito instrutiva, reconstrução histórica «da longa memória da Igreja» em quatro traços relevantes da identidade eclesial, e de uma reflexão teológica elementar que procura extrair conclusões coerentes para o modo como compreendemos e como atuamos, hoje, a Igreja. No que diz respeito à tradição, de forma muito pedagógica e com o saber amadurecido pelo estudo e pela idade, aprendemos com o dominicano francês, nascido em 1935, que o que parecia ser desde sempre e que, por isso, deveria ser para sempre, afinal, não o é, sendo até, em vários casos, relativamente recente na história da Igreja. Por isso, a fidelidade à grande tradição, poderá pedir, não a conservação, mas a mudança.
No que diz respeito à tradição, de forma muito pedagógica e com o saber amadurecido pelo estudo e pela idade, aprendemos com o dominicano francês, nascido em 1935, que o que parecia ser desde sempre e que, por isso, deveria ser para sempre, afinal, não o é, sendo até, em vários casos, relativamente recente na história da Igreja. Por isso, a fidelidade à grande tradição, poderá pedir, não a conservação, mas a mudança.
Expõe-se, em primeiro lugar, como a concentração de todos os poderes nas mãos do Papa e do clero não é tradicional, mas que é, antes, uma criação da modernidade já tardia. Se na modernidade o poder dos clérigos é concebido como poder sobre a Igreja, a tradição mais antiga concebe-o «como sendo exercido na Igreja e não sobre ela». A reforma gregoriana dos inícios do segundo milénio «foi a remota antecipação da situação atual», ao desqualificar religiosamente os leigos e absolutizar o poder papal, o que conduz «à obliteração da colegialidade e da sinodalidade». Esta será «redescoberta no Concílio Vaticano II», em concreto, quando compreende «a Igreja como povo de Deus». O autor afirma, por isso, ser «claro que a atual concentração de todos os poderes nas mãos do clero não é resultado de um desenvolvimento homogéneo da tradição», o que concede liberdade à Igreja de hoje «para introduzir mais colegialidade e mais sinodalidade na sua vida» e, se necessário, «para corrigir certas trajetórias que se tornaram doutrinalmente unilaterais». Tal resultado, é bom ter disso consciência, não se alcançará com meras exortações à boa vontade, mas pedirá transformações institucionais a realizar sobre as bases lançadas pelo Vaticano II.
Expõe-se, em primeiro lugar, como a concentração de todos os poderes nas mãos do Papa e do clero não é tradicional, mas que é, antes, uma criação da modernidade já tardia. Se na modernidade o poder dos clérigos é concebido como poder sobre a Igreja, a tradição mais antiga concebe-o «como sendo exercido na Igreja e não sobre ela».
O segundo capítulo é dedicado à vocação ao ministério e ao alargamento das formas de chamamento. O entendimento atual da vocação é de que se trata de um chamamento pessoal de Deus a batizados do sexo masculino, mediado pela Igreja. A «prioridade é dada aos sujeitos e já não ao objeto do ministério», o que paralisa «os bispos no seu dever de escolher pastores cuja necessidade é evidente». Resulta, pois, que «quando já não houver mais candidatos, por falta de persuasão íntima que deles se exige, fecham-se os seminários maiores, como agora; e caminhamos para uma Igreja sem sacerdotes». Paralelamente, «este sistema de candidatura obriga a dissuadir certos voluntários, ao mesmo tempo que impede de recorrer àqueles que, de acordo com o testemunho dos fiéis e membros do clero, possuam as necessárias aptidões espirituais e humanas». Legrand ilustra, porém, como a tradição não impõe «tal perversão», assim a classifica. Recorda, por isso, como «ao longo do primeiro milénio, e bem para lá dele, ninguém expressou o desejo de se tornar sacerdote. Todos os textos, inclusive as instruções papais, atestam o desejo das comunidades de obter um determinado cristão como seu pároco, desejo sempre respeitado, se necessário, pelo constrangimento, mesmo físico, exercido sobre o recém-ordenado». Se, hoje, é claro que não se pode recorrer a tais práticas de constrangimento, pode-se, sim, tomar «como ponto de partida do processo que leva à ordenação sacerdotal, não a diligência de um cristão individual, mas o facto de a Igreja não poder prescindir de pastores». À igreja local caberia individuar que tipo de pastor precisaria para o serviço mais adequado do Evangelho e da Igreja, identificar as pessoas que teriam as qualidades cristãs e humanas para tal serviço e chamá-las a exercer tal ministério em favor da comunidade.
A «prioridade é dada aos sujeitos e já não ao objeto do ministério», o que paralisa «os bispos no seu dever de escolher pastores cuja necessidade é evidente».
“O poder sacerdotal deve ser entendido, de acordo com a grande Tradição, como um ministério do único sacerdócio de Cristo”, é o título do terceiro capítulo. Na forma de entendimento dos poderes sacerdotais e da consequente sacralização dos seus titulares estará uma fonte de alimentação do clericalismo na Igreja. «A existência de dois sacerdócios – o dos fiéis e o dos sacerdotes – de essências essencialmente diversas», expõe-se, por exemplo quando «o Direito Canónico prevê o sacerdócio ministerial com base no carácter sacerdotal recebido na ordenação», estabelecendo «uma capacidade exclusiva para agir na pessoa de Cristo Cabeça», qual «marca indelével, que os interessados jamais podem perder e que lhes permite exercer, em total autonomia, os poderes recebidos, quaisquer que sejam as vicissitudes da sua vida cristã». Legrand defende que esta é uma problemática que surgiu apenas no século XIII, sob influência da aplicação de categorias aristotélicas de causalidade, e que «a tradição antiga coloca o poder dos sacerdotes na sua qualidade de pastores, presidindo à assembleia de um povo todo ele sacerdotal». Acrescenta que a tradição antiga «ignora a ideia de que os sacerdotes teriam um poder inerente à sua pessoa, que usariam à vontade fora desse contexto, e que seria de natureza essencialmente diferente daquela que existe fundamentalmente em todos os batizados». Importaria, por isso, aprofundar o ministério ordenado mais centrado no serviço a Cristo e à Igreja – é a eles que o ministro está ordenado – e menos na identidade sacerdotal de cada sujeito individual.
Importaria, por isso, aprofundar o ministério ordenado mais centrado no serviço a Cristo e à Igreja – é a eles que o ministro está ordenado – e menos na identidade sacerdotal de cada sujeito individual.
Por fim, apresenta-se a fraternidade cristã como superação da hierarquização entre mulheres e homens na Igreja: o que vale para o mundo deverá valer também para a Igreja, sendo que esta não terá autoridade na sua mensagem se não se transformar neste campo. «Como esperar um pouco mais de fraternidade no nosso mundo, sem a experimentarmos nós mesmos na relação íntima que se estabelece entre homens e mulheres e na nossa comunidade de fé?», interroga-se Legrand como conclusão do seu texto. Na apresentação ao livro, Grillo defende que «devolver a palavra às mulheres e reconhecer a sua autoridade é um processo de transformação cultural e institucional em que não é o Evangelho que muda, mas somos nós que começamos a entendê-lo melhor, de acordo com a conhecida expressão atribuída a João XIII, no seu leito de morte». Para isto mesmo, Legrand defende que a Igreja «deve lembrar-se ativamente da abolição de toda a hierarquização entre os seus membros», tendo bem presente que «Jesus ignorou deliberadamente a hierarquia entre homens e mulheres entre os seus discípulos» e procurando compreender as razões de adaptação cultural que foram levando a que a Igreja se fosse afastando progressivamente dessa prática disruptiva de Jesus. Ainda que se reconhecesse equivalência espiritual das mulheres cristãs em relação aos homens, foi-se afirmando a subordinação social, sobre a base, não evangélica, mas cultural, da sua menoridade natural em relação ao homem e da sua incapacidade estrutural para exercer autoridade pública. Neste quadro, o autor aponta quatro pistas como trabalho de casa, no qual a Igreja se deve aplicar: «dar voz às mulheres», para que o discurso sobre elas não seja redundante e não seja feito de frases feitas e de características supostas, ditas essencialmente por homens; «desenvolver a cultura histórica», «já que o anacronismo com que tratamos a história da Igreja e das mulheres é tão irritante como se censurássemos a Igreja por não ter suscitado um movimento a favor da democracia, no século de Luís XIV, ignorando, deste modo, a fragilidade das ideias no contexto das transformações sociais»; «considerar sempre as mulheres e os homens juntos» em qualquer assunto que diga respeito à vida da Igreja; «em todo o desejo de transformação, jamais permitir que se acredite que a mulher é um problema para a Igreja»: se há um problema, ele será encontrar uma parceria justa.
Para isto mesmo, Legrand defende que a Igreja «deve lembrar-se ativamente da abolição de toda a hierarquização entre os seus membros», tendo bem presente que «Jesus ignorou deliberadamente a hierarquia entre homens e mulheres entre os seus discípulos» e procurando compreender as razões de adaptação cultural que foram levando a que a Igreja se fosse afastando progressivamente dessa prática disruptiva de Jesus.
Sendo estas linhas, essencialmente, um exercício de dar a palavra como incentivo à leitura, termino com as mesmas palavras conclusivas da apresentação de Andrea Grillo: «As páginas deste texto podem ajudar a redescobrir coisas antigas na Palavra de Deus e na tradição que são surpreendentemente sãs e vivas, enquanto algumas coisas recentes podem ser pouco pensadas e muito unilaterais. Algumas coisas que parecem muito antigas são invenções de anteontem. Algumas coisas que parecem ser novidades perigosas são formas tradicionais de sabedoria antiga». Por isso, «só num renovado caminho comum, a ser feito plenamente e sem medo, voltará o exercício de autoridade a ser um lugar aberto ao mistério».
Assim seja, podemos augurar-nos, em palavras e atos, sem omissões.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.