Chegou o novo normal

Depois do primeiro embate do coronavírus no mundo da educação, da negação ou mesmo ansiedade, é agora o tempo da aceitação e de pensarmos em oportunidades de aprendizagem contínua, desafiando quer direcções de escolas, quer educadores.

Se começasse este texto dizendo que o coronavírus chegou sem aviso prévio e afetou toda a gente, do ocidente ao oriente, norte e sul, brancos, negros da mesma maneira, então este seria mais um texto sobre a pandemia. Mas gostava de me focar no ano letivo que vai começar em setembro e nas oportunidades que as novas circunstâncias nos podem dar.

Em março, os alunos foram mandados para casa quase de um dia para o outro, as famílias tiveram de se adaptar a viver juntas 24/7, professores e outros educadores tiveram de pensar rapidamente em como responder à realidade que, em princípio, devia ser temporária e parece que se tornou no novo normal.

Depois de alguns meses a ensinar e a aprender através de plataformas digitais, agora que estamos quase a chegar ao final deste ano letivo, como é que podemos começar a pensar no novo normal, em vez que gastarmos as nossas energias a tentar voltar a um tempo que já não existe?

O coronavírus atirou-nos para um novo paradigma na educação. Não podemos voltar atrás. Estamos no tempo da pesquisa extraordinária, o tempo de pensar fora da caixa, de desafiar os antigos modelos e ousar desenvolver outros novos. Enquanto o tempo está a passar, pode haver quem se faça cego às diferenças; outros sentir-se-ão ameaçados por alguns que continuam a remar contra a nova maré, por agitarem as águas. Infelizmente, esses desistirão por cansaço ou solidão. É tempo de aproveitar a nova corrente. Dizem que nisto do coronavírus estamos todos no mesmo barco. Não é verdade. Estamos todos na mesma água, isso sim. Mas as diferenças sociais, económicas, raciais e de género deram-nos embarcações muito diferentes, motores a uns, remos a outros e há ainda os que tentam nadar como podem. Por esse mundo fora, ainda há quem procure um pau de giz para escrever no quadro enquanto outros partilham gigas de informação só ao clicar em share no seu iPad.

É verdade que o coronavírus fez-nos dar conta de muitas desigualdades, mesmo dentro da mesma escola: em Portugal, onde o acesso a dispositivos móveis é comum, muitas famílias enfrentaram a dificuldade de partilhar computadores, ver que o que tinham era obsoleto ou repensar os seus orçamentos familiares para comprar dispositivos novos. Mas também se possibilitaram novas conversas, acelerou-se o processo de partilha de materiais, permitiu-se procurar novas fontes de estudo, trabalho em grupo e avaliação.

Antes do confinamento e do distanciamento físico provocados pelo vírus, as redes sociais já eram parte das nossas vidas. A Gen-Z (1995-2015) nasceu quase com os telemóveis nas mãos. Atualmente, o Facebook é para os avós, o Instagram é usado em todo o mundo, o Twitter serve como fonte credível de notícias e o Tiktok e o Snapchat põem-nos de imediato nas vidas uns dos outros. O Tumblr é os novos diários, o Discord o novo salão de jogos onde se fala dos professores e se trocam cábulas e não param de aparecer podcasts de todo o tipo. E os nossos alunos sabem perfeitamente como usar quer os dispositivos móveis, quer as apps que eles contêm.

Já no passado, alguns professores “arrojados” enviavam mails com materiais e algumas escolas “futuristas” investiram em plataformas ou sistemas de gestão curricular para centralizar os seus serviços. O mundo das apps gratuitas de e-learning foi crescendo conforme a curiosidade em aprender línguas ou outras competências.

Já no passado, alguns professores “arrojados” enviavam mails com materiais e algumas escolas “futuristas” investiram em plataformas ou sistemas de gestão curricular para centralizar os seus serviços. O mundo das apps gratuitas de e-learning foi crescendo conforme a curiosidade em aprender línguas ou outras competências.

Mas o que antes era moda, agora é uma necessidade; o que parecia uma ameaça, pode tornar-se agora um bem de primeira necessidade. Ou seja, o e-learning já existia e a tecnologia e os dispositivos móveis já faziam parte das nossas vidas. É certo que os pais e os professores tentaram o mais que puderam afastar as crianças e adolescentes do seu uso constante e procuraram estabelecer regras para isso. Porque eram vistos como ocupação de tempos livres, para jogos e chats. No entanto, enquanto os adultos tentavam combater essa luta desigual contra os telemóveis, a indústria foi desenvolvendo equipamentos e software cada vez mais baratos e user-friendly.

Tudo isto pode ser uma óptima oportunidade para os professores passarem do fiel quadro para os ecrãs e darem as boas-vindas ao m-learning. Assim que os dispositivos móveis dos alunos forem recebidos nas aulas como um recurso pedagógico, passam de inimigo a aliado e podem ser integrados nos processos de aprendizagem e fazer a ponte entre a aprendizagem formal e a informal.

Na sua campanha da Semana de M-Learning 2020, a UNESCO chamou-lhe um meio para facilitar a aprendizagem a todos e em todas as partes de forma equitativa para todos os seres humanos. O virtual passou a ser um espaço de encontro, onde os alunos se encontram e jogam, mas onde também podem aprender e defender as suas causas. Se, por um lado, continuará a haver desigualdades sociais no acesso a dispositivos móveis e apps e se é preciso continuar a educar para a gestão do tempo e a filtrar conteúdos, há um lado positivo no uso destes meios.

Nunca foi tão fácil aceder a informação de todas as partes do mundo, contactar pessoas da mesma idade que vivem noutras culturas, escutar testemunhos em primeira pessoa ou partilhar informação credível. Na relação escola-família, podem descobrir-se novas formas de comunicação. Em lugares onde os livros são escassos, os e-books podem chegar a todos. Claro que tudo isto exige uma nova conceptualização e novas regras de uso da tecnologia, assim como novos modos de dar aulas.

O novo ano letivo não vai ser um #TBT. O presente abriu as portas a um novo futuro, a um novo paradigma escolar, mais tecnológico e, quem sabe, menos físico e dentro de portas. Por implicar o uso de dispositivos e apps personalizáveis, por ser multifuncional, imediato, motivador e user-friendly, o m-learning pode passar a fazer parte de uma realidade híbrida entre aulas presenciais e aulas online. Além dos benefícios ecológicos contra a poluição ou o gasto de papel e outros materiais, o m-learning pode ajudar a quebrar barreiras físicas, melhorar competências digitais, multiplicar recursos didáticos, promover novos meios de tutorias, possibilitar novas formas de avaliação, etc.

Nada pode substituir o contacto visual, a linguagem não-verbal ou a espontaneidade do encontro humano. Não estou a defender o fim das aulas presenciais. Mas vejo no nosso novo contexto uma oportunidade para refletir sobre novos meios de aprendizagem. O coronavírus obrigou os professores a repensar o modo de dar aulas. A passagem forçada e imediata de aulas presenciais para aulas online não lhes deu tempo para pesquisar adequadamente como o fazer. Enquanto faziam o que podiam para manter as aulas, fizeram um esforço hercúleo nos últimos meses para se adaptar, dormindo menos, privando as suas famílias da sua presença e reduzindo os seus tempos de descanso e lazer.

Mas os últimos meses não foram só dias de e-learning ou aulas à distância. Depois do primeiro embate, da negação ou mesmo ansiedade, é agora o tempo da aceitação e de pensarmos em oportunidades de aprendizagem contínua. Porque o próximo ano tem de começar a ser pensado já.

As direções escolares e as lideranças têm de ter esta verdade assumida: o próximo ano letivo não vai começar como o que agora termina.

1. As direções têm de começar a pensar num sistema híbrido, onde as aulas síncronas e assíncronas têm os seus tempos próprios.

2. Os novos métodos exigem investimento e decisões acerca de que plataformas usar.

3. Os professores e todo o pessoal das escolas devem ser formados para o uso das novas plataformas.

4. As escolas podem precisar de novos gabinetes, por exemplo, apoio à informática ou apoio e acompanhamento de professores e outros não-docentes.

5. As bibliotecas, os serviços sociais e pastorais e outros serviços devem ser repensados à luz do novo normal.

6. A criação de um sistema de mentores para que os professores se sintam confirmados e acompanhados na produção de novos materiais.

Quanto aos professores, os últimos meses foram uma óptima prova para o que aí vem. Aqui ficam quatro perguntas que podem ajudar a planificar o próximo ano:

1. O que é que usei durante estes meses para substituir a minha forma habitual de ensinar, mas não serve a longo prazo?

As circunstâncias levaram a que os professores usassem materiais que já tinham, mas que não servem para as aulas online.

2. Como é que as aulas online melhoraram os materiais que já tinha?

Alguns materiais que os professores foram produzindo ao longo dos anos foram melhorados nos últimos meses.

3. Fui capaz de integrar novas abordagens e materiais ao meu modo de ensinar?

Depois do desespero inicial, os professores encontraram novos materiais para as suas aulas.

4. Há alguma coisa que tenha de substituir na minha maneira de ensinar?

Talvez esta seja a pergunta mais exigente de todas, porque implica auto-avaliação e sair da zona de conforto para abraçar o novo normal.

 

A todos os que trabalhamos em Educação – e vemos educar como uma missão de vida – foi-nos dada uma oportunidade que aparece muito poucas vezes na História da humanidade: a de pensar um novo modelo de ensinar. Responder positivamente a este desafio é dizer sim aos nossos alunos, ao nosso mundo e ao futuro.

Fotografia –  ITU Pictures  I Wikimedia commons

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.