Check-up educativo: análises, radiografia e eletrocardiograma

Umas análises ao sangue que corre nas veias educativas do Estado, uma radiografia reformativa ao sistema educativo português e um eletrocardiograma ao futuro que estamos a construir como povo.

A educação não é apenas um conjunto de regras de cortesia necessárias à convivência ou um contrato social de não agressão, alicerçado no respeito pela autonomia e pela liberdade de cada um. Recentemente, em Santo Domingo, capital da República Dominicana, onde vivo há três meses, viajei num táxi coletivo, chamado “concho”, onde as pessoas vão entrando e saindo, segundo a rota e as necessidades. Um “muchacho”, com uniforme escolar, entrou discretamente e não pagou. O condutor, que também é o cobrador, zeloso do seu salário, dirigiu-se aos passageiros enlatados, porque onde cabem 3 entram 4, indignado e ameaçando parar. De fones nos ouvidos, desligado e indiferente, o “muchacho”, como se nada fosse com ele, ignorava a conversa, até que por fim, perante a insistência de uma senhora mais velha, tirou uma nota de 100 pesos e pagou. Diante desta atitude e da presença de estrangeiros, começou uma aula de cidadania sobre princípios éticos, onde intervinha a mesma senhora, como mestra, um outro senhor, como professor assistente, diante da observação atenta de outros “muchachos”, também de uniforme escolar, que perfaziam a turma. Era a sociedade a educar o individuo, não apenas para a autonomia e a liberdade (direitos) mas também para o compromisso social (deveres).

Todavia, a educação também é a formalidade de uma escola, de um currículo, composto por aprendizagens essenciais e áreas de competência. Analisemos o sangue que corre nas veias educativas do Estado. Recentemente, ouvi o Ministro da Educação, Dr. João Costa, num podcast do Jornal Expresso, “Ser ou não ser” (31/10/23), questionado sobre a polémica em torno à disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, afirmar: “Os filhos não são do Estado nem das família. São cidadãos plenos e têm os seus direitos. E nem o Estado nem a família se pode arrogar o direito de os privar de informação e conhecimento.” Ao que poderíamos acrescentar: ainda que seja o Estado que determina os conteúdos e as disciplinas do currículo e, promovendo políticas educativas discriminatórias, impeça as famílias de escolher livremente o Projeto Educativo em que são educados os seus filhos. Quando o Estado priva “os cidadãos de plenos direitos” de uma educação de qualidade, de aulas, do sucesso escolar ou de manuais gratuitos, de computadores e outro tipo de apoios, de quem são os filhos: da família ou do sistema? A questão que frequentemente se levanta sobre a qualidade do nosso sistema de ensino e que tantas vezes se reduz ao mar vermelho que diferencia as escolas pelo seu proprietário, não se pode circunscrever apenas à justa luta pela escola pública, mas terá que se ampliar a um pacto educativo que inclua, de modo crítico e participativo, todos os intervenientes: todas as escolas, alunos, professores, famílias e sociedade civil. Num Estado de direito, o ministério da educação não pode ser o paizinho dos filhos da escola pública e o padrasto dos filhos da escola privada.

A questão que frequentemente se levanta sobre a qualidade do nosso sistema de ensino e que tantas vezes se reduz ao mar vermelho que diferencia as escolas pelo seu proprietário, não se pode circunscrever apenas à justa luta pela escola pública, mas terá que se ampliar a um pacto educativo que inclua, de modo crítico e participativo, todos os intervenientes: todas as escolas, alunos, professores, famílias e sociedade civil.

Aproxima-se uma campanha eleitoral de vários meses. Seria um desperdício de tempo e de oportunidade se todo o discurso político e o debate de ideias sobre a educação se restringisse exclusivamente à justa luta dos Professores ou às polémicas medidas para suprir a sua falta. Recentemente, surgiu, na praça pública, o debate sobre o uso de telemóveis nas escolas e sobre os efeitos do elevado tempo da exposição a ecrãs no desenvolvimento das crianças. Estudos meta-analíticos, que comparam a compreensão da leitura em papel e em ecrã, em iguais condições, afirmam que a compreensão da leitura melhora quando os alunos leem textos impressos em papel [1]. Na era da digitalização progressiva do ensino, alguns países vanguardistas na adoção de manuais digitais, como a Noruega e a Suécia, decidiram recuar. Em Portugal, está a ser implementado um programa de desmaterialização da avaliação externa, que prevê que todas as provas de aferição e exame nacional, já em 2025, sejam digitais. Estima-se que esta medida política tenha um impacto didático muito significativo nas metodologias de sala de aula, no processo de avaliação e na forma como os alunos são preparados para estas provas. Talvez esta longa e não programada campanha eleitoral, invulgarmente situada a meio do ano letivo, evitando discursos populistas e ideológicos, possa contribuir para uma séria reflexão, já em curso na sociedade portuguesa, sobre a necessidade de fazer uma radiografia reformativa ao nosso sistema educativo: reestruturando a forma como funciona o ministério da educação; repensando a autonomia das escolas e o sistema de avaliação externa; dignificando a vocação dos professores e promovendo a sua formação contínua; avaliando criticamente os impactos da descentralização da gestão das escolas públicas para as autarquias; repensando o sistema de acesso ao ensino superior; avaliando a implementação da legislação educativa dos últimos anos[2]; lipoaspirando o currículo atual, revendo as matrizes curriculares e reorganizando os conteúdos que se repetem, em diferentes disciplinas e diferentes anos, favorecendo abordagens integradoras e multidisciplinares do conhecimento. Com vista à melhoria das práticas educativas e das aprendizagens dos alunos, seria necessário que o ministério de educação passasse de um paradigma de autodefesa a um paradigma de autocrítica; de um paradigma de autojustificação, a um paradigma onde os dados fornecidos pela avaliação externa e por estudos internacionais (PIRLS, PISA, etc) deixam de ser uma ameaça, conduzindo a alterações significativas do sistema e concretizando o desejo de um país economicamente mais competitivo e humanamente mais desenvolvido.

Com vista à melhoria das práticas educativas e das aprendizagens dos alunos, seria necessário que o ministério de educação passasse de um paradigma de autodefesa a um paradigma de autocrítica; de um paradigma de autojustificação, a um paradigma onde os dados fornecidos pela avaliação externa e por estudos internacionais (PIRLS, PISA, etc) deixam de ser uma ameaça, conduzindo a alterações significativas do sistema e concretizando o desejo de um país economicamente mais competitivo e humanamente mais desenvolvido.

Segundo o anunciado, no próximo dia 10 de março, o país irá a votos. Num país democrático, a cidadania não é apenas uma disciplina, por vezes polémica, do currículo nacional, mas a oportunidade de participar ativamente na transformação do país. Recentemente, a jornalista Joana Pereira Bastos, num artigo publicado no Jornal Expresso (11/11/23), dava conta de que os professores universitários se queixam de uma crescente interferência dos pais na vida académica dos estudantes. A jornalista descreve os diferentes modos como esta interferência se tem desenvolvido, com destaque para os emails que os pais têm enviado aos professores universitários, manifestando a crescente preocupação pela diminuição da autonomia e o aumento da imaturidade dos alunos. Será que se os pais pudessem votar pelos filhos a taxa de abstenção diminuiria nas próximas eleições legislativas? Num país que vive de uma subsidiodependência e de um excessivo providencialismo do Estado, talvez estas imprevistas eleições sejam a oportunidade, como povo, de fazermos um eletrocardiograma ao futuro que estamos construir: Queremos uma cidadania de aparências e de indiferença ou uma cidadania de participação e de responsabilidade? Queremos uma cidadania da cunha ou do respeito pela justiça? Promover áreas de competência como o pensamento crítico e a resolução de problemas exige educar cidadãos autónomos, informados e livres. Se o sistema não o faz, façamos nós, os cidadãos, ajudando cada um a pagar o seu bilhete.

 

 

[1] Cf. Juan Carlos Bustamante, Belén Fernández-Castilla, Manuel Alcaraz-Iborra, “Don’t throw away your printed books: A meta-analysis on the effects of reading media on reading comprehension”, Computers in Human Behavior 145 (2023) 107739.

[2] DL 54/2018, DL 55/2018, PASEO e distintas portarias.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.