Cessar-Fogo

Mesmo que o impensável possa acontecer, o aniquilamento geral da população em Gaza, sendo mais um crime de guerra, não fará desaparecer o povo palestiniano. Nem o conflito israelo‑palestiniano...

A 4 de outubro Francisco publicou a exortação apostólica Laudate Deum. Oito anos após a Laudato si’, estando as questões ambientais sempre presentes nas suas inquietações, o Papa oferece-nos uma nova análise sobre a crise climática que nos interpela e desassossega. Sendo assunto incontornável, do maior interesse para “todas as pessoas de boa vontade”, imediatamente decidi que o artigo do inverno de 2023 seria sobre este assunto. Mas, quase em simultâneo, o avivar trágico do velho (e nos últimos anos quase esquecido) conflito israelo‑palestiniano obrigou-me a voltar às guerras e à paz. Afinal, antes ainda do colapso ambiental, o nosso presente caótico confronta-nos com o risco da catástrofe decorrente da guerra nuclear, prometendo concretizar tragicamente a ironia do filósofo Vladimir Solovyov, citado com indiscutível pertinência por Francisco na Laudate Deum: “Um século tão avançado que teve a sorte de ser o último”.

Quando no artigo do verão passado escrevi sobre outro conflito mortífero em curso, o da Ucrânia, sublinhei que “calar as armas para dar a voz à diplomacia” era a única saída decente para uma guerra que ameaça perpetuar-se. Defendendo que o belicismo deveria ser contrariado por uma razão realista, a exigência do fim das hostilidades é também uma exigência moral que deverá ser assumida como prioridade pelos responsáveis das instituições internacionais e dos governos que efetivamente contam na política global. No caso do conflito israelo-palestiniano, o cessar-fogo impõe-se com uma urgência ainda mais premente, considerando a dimensão da devastação a que Gaza e os seus habitantes estão a ser submetidos, num território com uma densidade demográfica de tal grandeza que é de duvidosa possibilidade distinguir entre combatentes e população civil. Cada bombardeamento mata principalmente não combatentes, homens, mulheres e crianças encurralados naquele que é, hoje, o território mais vigiado, cercado e isolado por terra, mar e ar.

No caso do conflito israelo-palestiniano, o cessar-fogo impõe-se com uma urgência ainda mais premente, considerando a dimensão da devastação a que Gaza e os seus habitantes estão a ser submetidos, num território com uma densidade demográfica de tal grandeza que é de duvidosa possibilidade distinguir entre combatentes e população civil. Cada bombardeamento mata principalmente não combatentes, homens, mulheres e crianças encurralados naquele que é, hoje, o território mais vigiado, cercado e isolado por terra, mar e ar.

Como os Jesuítas de Portugal enfatizam no seu comunicado de 27 de outubro,[1] convocando as declarações do Papa Francisco, só pode haver “apenas um lado” na guerra que devasta Gaza e promete incendiar o Médio Oriente (e até para além dele): o “da paz”. Por outras palavras, é preciso recusar as leituras maniqueístas que querem produzir a divisão com base em critérios como “nós e eles”, “civilizados e bárbaros”, “bons e maus”. Sem hesitações, exigir o cessar-fogo, como tem sido rogado insistentemente por António Guterres, agora pelos responsáveis do Comité Permanente Interagências (IASC) do sistema das Nações Unidas,[2] não se confunde com “pausas humanitárias”. Sem obliterar a relevância da paragem da guerra por um momento que seja, não se trata de suspender “a licença para matar” por um par de horas ou dias, mas sim de interromper a violência, recusando que ela possa oferecer solução decente para o conflito.

Sem obliterar a relevância da paragem da guerra por um momento que seja, não se trata de suspender “a licença para matar” por um par de horas ou dias, mas sim de interromper a violência, recusando que ela possa oferecer solução decente para o conflito.

Se o cessar-fogo não se concretizar, o resultado medir‑se-á em dezenas, quiçá centenas de milhares de mortos e feridos, numa população que pouco ultrapassa os dois milhões de seres humanos. A isto somar-se-á o êxodo em massa de boa parte dos que conseguirem sobreviver, para o Egito, e daí para outras geografias, nomeadamente para a Europa, multiplicando os refugiados que terão de ser abrigados, alimentados e cuidados. Por isso, porventura mais do que em qualquer outro conflito, “a guerra não resolve nenhum problema, apenas semeia a morte e a destruição, aumenta o ódio, multiplica a vingança. A guerra apaga o futuro”, lembra-nos Francisco. Procurando manter-me no campo da razão realista acima evocada, este “momento quente” do conflito israelo-palestiniano nada resolve, antes aprofunda o ressentimento, o rancor e a vontade de vingança. Ou seja, traz a promessa de mais guerra, morte e destruição ao Médio Oriente, impedindo israelitas e palestinianos de viver em paz. Mesmo que o impensável possa acontecer – o uso de armas atómicas em Gaza, como foi sugerido por Amichay Eliyahu,[3] ministro de Benjamin Netanyahu (ou, o que não será muito diferente, fazer a Gaza o que os bombardeiros anglo-americanos fizeram a Dresden em fevereiro de 1945)[4] –, o aniquilamento geral da população em Gaza, sendo mais um crime de guerra, não fará desaparecer o povo palestiniano. Nem o conflito israelo‑palestiniano…

“a guerra não resolve nenhum problema, apenas semeia a morte e a destruição, aumenta o ódio, multiplica a vingança. A guerra apaga o futuro”, lembra-nos Francisco.

Repisando: só o cessar-fogo abre o caminho da paz! Só ele permitirá resolver problemas imediatos, isto é, salvar vidas humanas: as dos reféns nas mãos do Hamas, a dos civis palestinianos, em especial os mais frágeis, doentes e crianças. E também as vidas dos combatentes, importa não esquecer, cujos chefes de ambos os bandos anunciam uma luta encarniçada em cada esquina, ruína e buraco de Gaza. Já numa outra temporalidade, medida em anos e até décadas, a paz é condição necessária para israelitas e palestinianos discutirem as causas do conflito, recentes e antigas. Esta tarefa, forçosamente envolvendo as instituições internacionais e as principais potências, é inseparável da procura de um caminho que permita que israelitas e palestinianos possam construir uma paz justa, encontrando soluções políticas viáveis e duráveis para a existência de dois Estados, no respeito pelas resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e do direito internacional. Apesar das dificuldades inauditas que esta tarefa coloca a israelitas e palestinianos – pensemos na expulsão de palestinianos das suas casas e terras desde a Nakba (catástrofe em árabe) e da primeira guerra israelo-árabe em 1948, na ocupação e nos colonatos, enfim, nos assassinatos e massacres cometidos por uns e outros –, só o escovar da história a contrapelo permite evitar a catástrofe, lembrando a sétima tese sobre o conceito da história de Walter Benjamin, judeu alemão e uma das mentes mais brilhantes da primeira metade do século XX, tragicamente desaparecido em 1940. Se fracassarem, se fracassarmos, teremos mais guerras, novas catástrofes, mais sofrimento e destruição.

 

[1] Cf. Artigo Ponto Sj – Fim ao Massacre em Israel e na Palestina
[2] Cf. Declaração dos dirigentes do Comité Permanente Inter-Agências sobre a situação em Israel e nos Territórios Palestinianos Ocupados: “Precisamos de um cessar-fogo humanitário imediato”
[3] Cf. Ministro de extrema-direita diz que bombardear Gaza é uma opção e o PM suspende-o das reuniões do Governo
[4] A evocação de Dresden como exemplo para a ação israelita foi feita, em momentos diferentes, por Moshe Feiglin, antigo membro do parlamento israelita e atual líder do partido Zehut, e por Tzipi Hotovely, embaixatriz de Israel no Reino Unido (cf. ‘Vingança bíblica’: Político israelita quer transformar Gaza numa “Dresden”; Um líder israelita disse: “Está na altura de transformar Gaza em Dresden! Gasear os palestinianos agora”?  e cf. Oficial israelita invoca os bombardeamentos de Dresden para defender o ataque israelita a Gaza.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.