Centrar-se para se descentrar – Do ego ao teocentrismo

A bússola tende a desafinar com a vida, fazendo-lhe perder o Norte. É necessário um esforço permanente de afinação. A contrariar a tendência da natureza egocentrada para viver Teocentrada.

Nascemos voltados para dentro. Apropriamo-nos do mundo à nossa volta na medida em que este nos pode trazer algum benefício. Desde o conforto e segurança do colo, do leite, ao afago, calor ou validação.

É fundamental e saudável o amor que nos gera e estrutura os andaimes [do crescimento] e que depois nos permitirá ser para fora de nós. Evoluímos aos poucos, por períodos, como estudou Piaget na Suíça, ou por estádios, como postulou Kohlberg face ao desenvolvimento moral, nos EUA.

Numa primeira fase, a defesa e a primazia do que é interpretado como meu. A minha família. Os meus amigos. Os meus brinquedos, a minha casa. Para mim. Até a formulação da frase: “Vou eu e…” Primeiro “eu” … É constitucional, é natural. Não é defeito de fabrico ou pecado original, é tendência visceral ou feitio existencial. Noutra fase, será o meu prisma, a minha verdade como única, face à qual o outro tem necessariamente de compreender e aceitar, porque é maior e mais importante do que a dele.

O prisma pessoal não é falso. Todavia, não só não é o único como pode, e em maior ou menor grau fá-lo, induzir-nos ao esquecimento de que a realidade tem tantas verdades quantas pessoas e suas circunstâncias.

Como a luz, as fases têm uma natureza corpuscular e ondulatória, e estão sujeitas às variações do ambiente. E vão dando lugar a outras, não apagando, porém, o feitio existencial.

À medida que vai crescendo, o eu percebe-se num mundo de outros eu. E apercebe-se de que pode fazer escolhas que respeitem e valorizem ou não estes outros eu.

O ser humano tem de baixar ao fundo de si mesmo para se encontrar. Vendo e reconhecendo o que tem de mais positivo. Para si, para os outros. Descer ao fundo para ver e reconhecer o que tem de mais negativo. Para si, para os outros. Não para bater no peito um exercício de mea culpa, que seria destrutivo e infrutífero, mas para se aceitar tal como é e como está. E esse é um possível caminho para a aceitação dos outros como são e como estão. Talvez o único?

O ser humano tem de baixar ao fundo de si mesmo para se encontrar. Vendo e reconhecendo o que tem de mais positivo. Para si, para os outros. Descer ao fundo para ver e reconhecer o que tem de mais negativo. Para si, para os outros. Não para bater no peito um exercício de mea culpa, que seria destrutivo e infrutífero, mas para se aceitar tal como é e como está. E esse é um possível caminho para a aceitação dos outros como são e como estão. Talvez o único?

“Descobri que a eficácia está quando me posso ouvir a mim mesmo, aceitando-me e ser eu próprio”, defendia o psicólogo americano Carl Rogers.

A bússola tende a desafinar com a vida, fazendo-lhe perder o Norte. É necessário um esforço permanente de afinação. A contrariar a tendência da natureza egocentrada [centrada em si] para viver Teocentrada [Teo ou Theós, do grego – centrada em Deus]. Porque nós fazemos o centro, onde à nossa volta tudo tem de gravitar, descentramo-nos do verdadeiro Centro.

Nascida a 15.01.1914 em Midelburgo, capital da província da Zelândia, na Holanda (atualmente designada por Países Baixos), Etty Hillesum era a mais velha de três filhos de um casal judeu não praticante [da religião judaica].

Emotiva, afetiva, aos 27 vive uma crise existencial que a leva a recorrer a apoio psicológico. Será com Julius Spier que imerge no intangível e imaterial, e assim na espiritualidade. Não religiosidade, porquanto não se envolve em atividades ou rituais mais tradicionais.

Etty foi percebendo a necessidade de estar consigo própria, optando todos os dias por 30 minutos de silêncio resguardados na sua interioridade. Ao encontrar-se consigo mesma encontra um “Meu”, a que, citando-a: “comodamente chamei ‘Deus’”.

O seu caminho interior fá-la regressar a casa, ou seja, à verdade e profundidade do seu coração. É ali que encontra a nascente profunda, o próprio Deus, que por vezes está sepultado com pedras e areia. Etty tem de O desenterrar várias vezes. Opta por viver nada menos do que plenamente e, ao fazê-lo, sente-se livre e em paz.

O seu caminho interior fá-la regressar a casa, ou seja, à verdade e profundidade do seu coração. É ali que encontra a nascente profunda, o próprio Deus, que por vezes está sepultado com pedras e areia. Etty tem de O desenterrar várias vezes. Opta por viver nada menos do que plenamente e, ao fazê-lo, sente-se livre e em paz.

Ante um Deus inerme, que se dá e comunica, sente-se amorosamente compadecida face ao outro eu na sua miséria. Com este solidariza-se inteiramente, transfigurando para ele o seu olhar.

Apesar de alguns amigos a poderem salvar, Etty escolhe voluntariamente juntar-se ao seu povo num Campo de Concentração. Sai para fora de si e faz da sua vida casa de Deus e abrigo dos mais frágeis. Ao ouvir-se e aceitar-se, descentra-se de si mesma e centra-se, aceitando plenamente um outro, no verdadeiro Centro.

Opta por se afastar de pessoas que cedem à ilusão de negar a realidade e das que a identificam apenas com o horror do que estão a viver. Compreende e aceita a realidade tal como ela é: “agora sei: eles [nazis] querem o nosso aniquilamento total”.

Para Etty Hillesum, o homem ocidental não consente a dor como parte integrante da vida, não conseguindo, deste modo, extrair dela quaisquer forças positivas.

O sentido – e a utilidade – da dor experimentada em circunstâncias tão desumanas e desumanizadoras [como Auschwitz] é o que permite ao homem, de acordo com Etty Hillesum, alargar os seus horizontes de conhecimento, libertando-o do mundano e superficial da vida.

O sentido – e a utilidade – da dor experimentada em circunstâncias tão desumanas e desumanizadoras [como Auschwitz] é o que permite ao homem, de acordo com Etty Hillesum, alargar os seus horizontes de conhecimento, libertando-o do mundano e superficial da vida.

Segundo Frei Michaeldavide Semeraro, Etty apresenta uma lucidez profunda sobre o mal, que não tem futuro, e sobre o bem, que cresce, existe desde sempre e tem futuro.

Como há 78 anos, as notícias e imagens de terríveis injustiças que nos chegam atualmente de muitos pontos do Globo desencadeiam crises pessoais e sociais profundas, mescladas de depressão e ansiedade. Tal é potencialmente gerador de mais violência, e como outrora instiga o descrédito no Homem.

Creio que há que fazer um esforço contínuo para ver para lá do visível e tangível, buscando incessantemente a plenitude como sentido último da existência humana. Não é um trabalho apenas para os decisores ou para um ‘eles’ fazerem, mas sim para um ‘eles num nós fazermos’.

No vagão apinhado de gente, de Westerbork (campo de trânsito) para Auschwitz – onde virá a morrer a 30.11.1943, Etty Hillesum escreve um bilhete que acredita vir a ser lido e dado a conhecer. E vem.

De acordo com Semeraro, a sua confiança inabalável na humanidade deve-nos levar a acreditar que, enquanto houver alguém com gestos humanos, não poderemos desesperar da humanidade.

Subscrevo inteiramente a descoberta de Etty, para quem uma paz futura só podia ser verdadeiramente paz se primeiro tiver sido encontrada por cada um dentro de si próprio.

No mundo de hoje continua a ser indispensável irmos limpando as pedras e a areia que tendem a sepultar a verdade e a justiça inscritas no coração de cada ser humano, não permitindo que seja a nossa tendência existencial a única a ditar a norma de viver.

 

Bibliografia:
Tornar-se pessoa. Carl Rogers. 1970. Moraes editores.
Etty Hillesum, Humanidade enraizada em Deus. Frei Michaeldavide Semeraro. 2016. Editora
Paulinas

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.