No último fim de semana de setembro, a Avenida Almirante Reis, em Lisboa, foi palco de duas manifestações, que mais do que dividir o trânsito, parecem dividir a sociedade. No sábado, o movimento Casa para Viver insurgia-se contra os senhorios que preferem quem traz salários de fora, capazes de pagar rendas exorbitantes, os “nómadas digitais” que rompem com o equilíbrio económico dos portugueses. No domingo, o grito da extrema direita de “Salvar Portugal” ecoava, desta vez contra os imigrantes pobres e refugiados que procuram um futuro melhor. Quer os nómadas digitais, quer os refugiados sonham com um pedaço de chão português onde possam construir as suas vidas. E os portugueses?
Eu, e tantos outros da minha geração, queremos sair de casa dos nossos pais, não para uma casa só nossa, mas para partilhar com amigos. Para quem está de fora, parece uma moda, uma tendência dos mais jovens com espírito de comunidade. Mas não é um estilo de vida e sim uma necessidade. É para muitos, a única maneira de não ficarmos (aos 30) no quarto da adolescência, a adiar os sonhos de independência.
As rendas em Lisboa tornaram-se insustentáveis. Jantares de sexta-feira à noite com amigos – todos a trabalhar, todos com os mesmos dilemas – parecem agora encontros de brainstorming coletivo: como conseguimos viver aqui? Como conseguimos conciliar salários medianos com rendas que ultrapassam a decência? Todos conhecemos histórias de pessoas que ou vivem em condições irregulares, partilhando casa com vinte ou trinta outros, numa tentativa desesperada de ficar perto dos empregos, da vida que se viram obrigados a construir longe dos seus países. E não é essa a que queremos para nós.
A verdade é que o problema é transversal, mas a solução não está à vista. Li recentemente We Found a Hat de Jon Klassen. Esta história infantil comoveu-me pelo conceito de partilha: o sonho de que eu possa ter um chapéu e tu também possas ter um chapéu. Se só houver um chapéu, como decidimos quem fica com ele? O princípio é tão simples e, no entanto, transporta uma verdade universal: todos merecemos ter um chapéu, ter um espaço para viver.
Mas o que acontece quando o chapéu, ou a casa, é um bem tão escasso que não dá para todos? No meio das duas manifestações que vi passar pela Avenida Almirante Reis, pergunto-me: será que todos compreendem que a crise da habitação não é apenas um problema de mercado ou de políticas públicas, mas um problema humano? A liberdade de ter um lugar para viver está a ser tomada de assalto, por uns porque as rendas são inflacionadas, por outros porque vivem na sombra da legalidade, muitas vezes sem escolha.
Ninguém tem respostas fáceis para a crise da habitação. Se só há um chapéu, é justo que eu o tenha e tu não? Ou vice-versa? Responde Maya Angelou: “A verdade é que nenhum de nós pode ser livre até que todos sejam livres.” Ou seja, não há liberdade quando há quem viva à beira da exclusão, sem um teto que lhe assegure um mínimo de dignidade. Não há liberdade quando viver em Lisboa, ou noutra cidade europeia, se transforma num privilégio só acessível a alguns. A crise não é só sobre casas. É sobre o futuro que estamos a construir e quem terá lugar nele.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.