Apesar de escrever com frequência sobre questões candentes do seu tempo, muitos textos do padre Manuel Antunes, mesmo se ‘datados’, continuam a dar que pensar. Como aperitivo, deixamos um excerto de um ensaio célebre.
«A misericórdia não é sinónimo nem de pietismo privatista, nem de sentimentalismo romântico, efusivo de mares de lágrimas sem sentido e sem motivo, nem de paternalismo, materialismo e fraternalismo platónicos ou platonizantes. É uma força que desperta ante o espetáculo desolado da miséria alheia. É um olhar que vivifica e não mata, salva e não condena, ergue e não deprime. É um impulso para agir sem cumplicidade e para reunir sem massificar. É uma vontade de sair de si, da prisão do próprio ‘eu’, para transformar o mundo e se transformar a si mesmo em permanente e incansável reciprocidade.
É pela misericórdia que se salvam as relações de pessoa a pessoa, sobretudo quando essas relações, por este ou aquele motivo, têm de ser longas, complexas, triturantes: no parentesco, na vizinhança, na situação profissional, no mais largo espaço social. É pela misericórdia que os grupos não se funcionalizam, não se homogeneízam e não se dissolvem. É pela misericórdia que a política não degenera em maquiavelismo do príncipe, individual ou colectivo. É pela misericórdia que inveteradas inimizades cessam, convertendo-se, porventura, no seu contrário. É pela misericórdia que diuturnos ressentimentos abrandam, lívidas invejas desaparecem, passos vacilantes se tornam firmes. É pela misericórdia que se abre o coração ao estrangeiro, se olha o insólito sem animosidade, como princípio, se encaram hábitos alheios e alheios sistemas de referência, sem atitudes condenatórias e sem julgamentos sumários. É pela misericórdia que se realiza a melhor apreensão e compreensão do mundo e da vida: a apreensão e compreensão dos místicos. É pela misericórdia – rio acaso subterrâneo – que se ligam mares e continentes, cidades e aldeias distantes, culturas e civilizações separadas por toda a espécie de barreiras.
É pela misericórdia que se salvam as relações de pessoa a pessoa, sobretudo quando essas relações, por este ou aquele motivo, têm de ser longas, complexas, triturantes: no parentesco, na vizinhança, na situação profissional, no mais largo espaço social.
A misericórdia constitui o fulcro, o eixo, o gonzo de tantas outras coisas que nem o conhecimento direto, nem a facilidade de comunicações, nem qualquer outro meio – mecânico, orgânico ou intelectual – podem proporcionar. Predisposição favorável, espaço livre de acolhimento, força e fundura, serenidade e longanimidade, a misericórdia, no sentido amplo aqui analisado, liga e religa todos os homens entre si e, em última instância, com Aquele a quem todos explícita ou implicitamente vivem referidos. Qualquer que seja o seu nome. A misericórdia é a grande via de acesso à Transcendência».[1]
Braga (dia 14), Porto (dia 15), Coimbra (dia 21) e Évora (dia 22) serão os palcos destas conversas a propósito da reflexão do padre Manuel Antunes sobre literatura, pedagogia, humanidades e política.
[1] FRANCO, José Eduardo; MACHADO DE ABREU, Luís, Compreender o mundo e atualizar a Igreja. Grandes Textos do Padre Manuel Antunes, sj, Lisboa, Gradiva, 2018, pp. 84-85.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.