No dia 21 de agosto de 1939 nasceu no Porto a fadista Beatriz da Conceição. Portanto, há algumas semanas atrás, ela teria feito 80 anos. Talvez o seu nome não diga muito à maioria dos leitores, mas esta senhora era e é apreciada de modo muito especial pela comunidade fadista; também por mim. Na noite de 26 de novembro de 2015, dia em que esta fadista morreu, escrevi este texto que hoje partilho convosco:
«Artur Batalha canta um fado (composto pelo meu violista preferido, Vital d’Assunção) que começa assim:
“Silêncio. Hoje morreu um poeta.
E a carne morreu esquecida como esquecida viveu.”
Hoje morreu uma fadista. Morreu aquela que cantou o corpo, impunemente, em pleno Estado Novo. Morreu quem comprava aos poetas os poemas que a apaixonavam. Terminou a biografia mais atípica dentro de uma mesma geração que já encontrei no fado. Morreu quem gritou: o herói está errado! Morreu quem construiu um repertório com um instinto ético que parece irrepetível. Quem chamou a atenção para a diferença entre cantar a palavra “água” e a palavra “Deus”… morreu.
Recordo-me de uma das tuas últimas atuações em palco. Interrompeste a meio um fado por achares que estava a correr mal. Recordo-me da carícia lenta, pesada, trémula da tua mão sobre a nuca do rapaz que veio ajeitar o microfone entre um fado e outro.
Excedias a fé na pequena porção de crença que sobrava da tua sensação de imerecimento ou de interdição. Hoje ela pode cantar-nos que morrer é, apenas, partir um pouco. Foi a entrevista que deste ao Público que me deu a explicação do perturbante, cortante, quase inibidor despojamento das tuas interpretações. É que a tua voz é uma história duríssima feita cicatriz. A tua voz é uma sonora cicatriz; e cicatriz rima com Beatriz. Haviam, afinal, reflexos madalénicos no teu rosto.
Cada fado surgia em ti suavemente catapultado pela ferida resolvida que era o teu palmo de chão. Cada fado era o esplendor da resolução que deste à malha de destinos do passado, a qual não quiseste continuar a tecer. Por isso é que em ti cantar não queria ser mais nada que dizer. Dizer sinceramente. Por isso é que ardia a ausência do espetacular e era a febre dos nomes que ardia; os nomes que, sinceramente, dizias.
Silêncio, hoje morreu uma fadista. Uma grande fadista. Morreu. Morreu-nos. Morreste-nos, Beatriz. Que hoje te escutemos resistindo à primeira camada de estranheza inevitavelmente espoletada pela não-vaidade da tua voz. Beatriz, que saudades teremos do teu “corpo feito grito”».
O fado «Deste-me um beijo e vivi» é um poema de João Dias interpretado no Fado Cravo (de Alfredo Marceneiro) em que Beatriz da Conceição canta o encontro da «fé perdida», a negação do mito e as mãos «vindas do fundo do tempo». Na assistência encontram-se dois atletas, Rosa Mota e o Professor Moniz Pereira (que compôs vários fados e escreveu também letras); ambos são saudados pela fadista no início. Este fado foi gravado em 1973 no disco «Canoas do Tejo»; anos mais tarde, em 2016, Raquel Tavares integra-lo-ia no álbum «Raquel», que dedicou a Beatriz.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.