Bem comum ou fortuna pessoal?

A riqueza parece ser anti-social: só assim se percebe por que motivo faz grupinho à parte e continua a evitar a maioria das pessoas.

Acaba de ser publicado o novo relatório da OXFAM (Comité de Oxford de Luta contra a Fome) sobre a situação de desigualdade entre (os muito) ricos e (os muito) pobres. Em suma, a riqueza parece ser anti-social: só assim se percebe por que motivo faz grupinho à parte e continua a evitar a maioria das pessoas. Ou talvez não seja só isso.

caricaturas

Quando se fala de desigualdade entre ricos e pobres, talvez seja bom começar por identificar as caricaturas de uns e outros, para evitar confusões. Para certos leitores, «rico» é sinónimo de corrupto, explorador, alguém sem escrúpulos e que não olha a meios para aumentar e preservar o seu pecúlio. E, não tenhamos dúvidas, certamente que os há. Do mesmo modo que entre os «pobres» também haverá mandriões, pessoas sem ambição e habituadas a viver às custas de outros. Mas, convenhamos: não faltam «pobres» inteligentes, criativos e empreendedores, como também há «ricos» honestos, trabalhadores e com sentido de justiça.

Relatórios como o da OXFAM também geram leituras caricaturais. Para uns, trata-se de um panfleto esquerdista pouco credível: faz generalizações descabidas, compara realidades de contextos diferentes, tem uma visão preconceituosa da economia. Para outros, é um documento profético que deveria ser lido, analisado e aplicado, que chama a atenção para problemas reais, ligados a necessidades básicas a que muitos ainda não têm acesso (saúde, alimentação, habitação, educação, trabalho).

As próprias instituições que produzem ou interpretam estes relatórios não estão isentas de caricaturas. Se apelam à mudança, são acusadas de hipocrisia. Afinal, querem acabar com a pobreza, mas são instituições ricas; apelam à moral, mas são imorais (por exemplo, as Igrejas, ou até a própria OXFAM). Se alguém contesta os resultados destes relatórios é imediatamente acusado ou de pertencer ao sistema (um rico a proteger os seus interesses), ou de ser cínico (um pragmático, ou um conformista).

As caricaturas têm esta capacidade de captar alguns traços familiares de uma dada realidade: seleccionam-nos, amplificam-nos e distorcem-nos. Por isso, de algum modo, as caricaturas mostram e escondem ao mesmo tempo, porque dão a conhecer algo da realidade, mas de maneira parcial e desproporcional. O desafio perante estas caricaturas não está em destruí-las nem em negá-las, mas em ser capaz de as pôr em perspectiva. Com efeito, cada uma delas põe em relevo um certo aspecto das desigualdades: (a) quanto às causas: injustiça e inércia; (b) quanto às análises: urgência e ingenuidade; (c) quanto aos agentes: moralismo e conformismo. Postas em diálogo, estas caricaturas iluminam-se, equilibram-se, corrigem-se. Portanto, é verdade que as desigualdades se devem à ganância (de alguns ricos) e à preguiça (de alguns pobres), mas isso não é tudo. É verdade, também, que os relatórios têm alguns preconceitos anticapitalistas e que denotam expectativas utópicas ingénuas, mas nem por isso são descabidos nem irrelevantes. Sem dúvida que há ambiguidades e contradições nos organismos que apelam à transformação social, o que também contribui para um certo desencanto pragmático e cínico, mas isso significa que a solução está em desistir ou achar que tudo é, simplesmente, «natural»?

É verdade, também, que os relatórios têm alguns preconceitos anticapitalistas e que denotam expectativas utópicas ingénuas, mas nem por isso são descabidos nem irrelevantes.

outra forma de contar

Seria no mínimo irónico se, depois destes parágrafos «anti-simplismo», terminasse este texto com um discurso à la Miss Universo, com soluções mágicas para um problema tão complexo. Na prática, estas linhas pretendem apenas sinalizar o modo como as caricaturas, redutoras e parciais, são um obstáculo à procura de soluções efectivas para o problema gravíssimo da pobreza que este relatório vem de novo apontar.

As desigualdades são reais e terão múltiplas causas, que as várias caricaturas apenas roçam. A narrativa marxista foi corajosa ao apontar certos mecanismos de exploração do trabalho de uns sobre os outros, do mesmo modo que a narrativa capitalista foi cativante ao afirmar que, pelo esforço pessoal, é possível singrar. Contudo, é preciso reconhecer a forma parcial como ambas descrevem o próprio funcionamento da sociedade. Sinteticamente, enquanto, no primeiro caso, a desigualdade é fruto de uma injustiça social, na segunda perspectiva ela aparece sobretudo como fruto de um (de)mérito pessoal. Ora, certamente não faltarão exemplos para sustentar uma e outra perspectivas… Talvez por isso fosse necessário que estas narrativas descobrissem outra forma de contar a história da desigualdade, menos simplista e menos caricatural e, mais ainda, que afirmassem em conjunto as razões para desejarmos a equidade e que passos podemos e queremos dar para a alcançarmos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.