À entrada de mais uma temporada de férias, lembro-me de um belíssimo poema de Cristovam Pavia, A Nossa Senhora
Voltarei à penumbra fresca da igreja
Ancestral, silenciosíssima e vazia,
Aonde está pousado o teu altar:
Doce mãe Maria…
E ajoelhar-me-ei,
E fecharei os olhos sem pensar…
– Que a minha oração nada mais seja:
Basta descansar.
Ouvi recentemente o Cardeal Patriarca D. Manuel Clemente a explicar que uma das grandes tentações ou dificuldades na vida cristã é a de querer ser “pai de Deus”, em vez de filho. À atitude filial de quem confia, pede ajuda, depende inteiramente de Deus, D. Manuel contrapunha a nossa tendência para pedir aquilo que nós já assumimos ser o melhor, de fazer recomendações ou até exigências, de preferir sempre a nossa vontade e de montar esquemas que blindem qualquer hipótese de surpresa – e de vida.
Este poema, atravessado por uma certa ânsia, faz-me ver que a vida de oração não pode ser um programa de ginásio espiritual. Que a disciplina que tanto me falta e tanto peço não é o verdadeiro fim. Basta descansar – o que eu realmente queria e que tão facilmente esqueço.
A vida não está feita para descansar assim, de joelhos. O que nos permite descansar, diz-se, é a extrema organização, a rapidez com que tratamos de tudo o que temos para tratar, o talento para delegar tarefas que podem ser delegadas, a capacidade de deixar o trabalho no escritório, de fazer exercício físico regularmente e de equilibrar a alimentação – tudo ótimo, mas tudo insuficiente. Este descanso não é o contrário de cansaço, é, na melhor das hipóteses uma pausa entre cansaços, que talvez nos permita acumular mais cansaço.
Como acordar descansado a meio da noite quando chora um bebé? Como descansar com o pedido que o chefe faz à última da hora e que cai para o fim de semana? Ou quando ao chegar a casa há ainda um jantar por fazer com ingredientes que nos esquecemos de comprar?
O que pode contrariar o cansaço? A certeza de que os cabelos na minha cabeça estão contados, a liberdade de confiar e obedecer a Deus, de saber que a minha vida e tudo o que nela existe depende mais de Deus do que de mim; que, na verdade, preciso de fazer muito poucas coisas – louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor (Princípio e Fundamento dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola [EE 23]). Mas a grande dificuldade está não propriamente no saber estas coisas, nem sequer no acreditar nelas, mas no vivê-las. Como acordar descansado a meio da noite quando chora um bebé? Como descansar com o pedido que o chefe faz à última da hora e que cai para o fim de semana? Ou quando ao chegar a casa há ainda um jantar por fazer com ingredientes que nos esquecemos de comprar?
Parece-me que uma das chaves está neste descansar de joelhos “na penumbra fresca da igreja/ancestral, silenciosíssima e vazia”, sem grande programa, sem pensar. Sem sequer pedir. Só receber, deixando-se chegar aos poucos, aos pés de Nossa Senhora. Descansar assim é mais do que libertar-se de preocupações, é libertar-se de si próprio. Levamo-nos sempre mais a sério do que seria preciso. O nosso nome, o nosso tempo, os nossos planos, a nossa agendazinha…tudo muito cansativo. Mas tudo amado por Deus. E, por isso, a Ele confiado. “Maria levantou-se e partiu apressadamente” – não com o peso das suas tarefas eventualmente adiadas, mas com a leveza de quem se alegra por levar Jesus, de quem depende só de Deus. “Que a minha oração nada mais seja: basta descansar.”
Fotografia: João Ferrand/Companhia de Jesus.- Capela do CUMN (Coimbra).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.