“Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus”. Enquanto passava uns belíssimos dias de férias junto ao mar, tocou-me comentar, uma vez mais, esta passagem do Evangelho na Eucaristia. Não me é fácil aderir sem hesitação a esta exortação de Jesus. Na verdade, as crianças são exemplo de quê? Sim, bem sei que são o melhor do mundo. Porém, o que observo inúmeras vezes é que têm birras exasperantes, que podem impor-se, ora como ditadores implacáveis, ora como sofisticados sedutores, que são impiedosos quando outra criança pega no brinquedo que estava esquecido num canto da sala, que lhes bastam duas palavras, “não” e “meu”, para fazer girar o mundo inteiro à volta do seu próprio umbigo. Seriam diferentes as crianças do tempo de Jesus? Provavelmente não, mesmo se o reconhecimento social fosse radicalmente inferior àquele de que gozam hoje. Sabemo-lo pelos próprios discípulos que costumam exibir um sentido pragmático bem apurado. O que fazem às crianças quando se aproximam? Afastam-nas. Não haveria paciência para as suportar.
Mas o sentido das palavras de Jesus e a reprimenda que dá aos seus discípulos ficava por esclarecer. Teria, por isso, que voltar a olhar com mais atenção. A praia, onde há sempre tantas crianças, seria um ótimo laboratório de observação. O que notei, então? As crianças brincam. Brincam sempre. Imaginam, sonham, inventam. Vi, por exemplo, muitos castelos. Uns simples, só com uma torre e quatro ameias; outros, muito grandes, com mais de dez torreões e muralhas a toda a volta. Alguns tinham túneis. Quase todos tinham fosso com água. Não vi nenhum crocodilo. Mas é possível que também houvesse. Vi também crianças a embrulhar outros em areia – digo, em farinha – porque estavam na cozinha a fazer croquetes. Vi ainda um menino a levantar voo sobre um tapete voador. Não vi qualquer criança que caminhasse direitinha como os adultos que as acompanhavam – asseguro que estive atento. Ou saltitavam ou dançavam ou faziam movimentos com os seus corpos que não consegui perceber exatamente o que significavam.
As crianças jogam e, jogando, sonham. Felizes, brincam e imaginam. As palavras de Jesus faziam-me mais sentido. “Tornar-se como as crianças que brincam e sonham”.
Isto que vi foram só castelos de areia? Fantasias? Equívocos? Não me pareceu de todo. Ali, na praia, pareceu-me que, para aquelas crianças, era tudo muito real. Os castelos eram mesmo castelos. E elas eram mesmo construtores, reis, rainhas, croquetes, pessoas que voam, até deixarem de o ser e passarem a ser outra coisa. Notei que brincar é coisa séria e que a imaginação faz realidade.
Assim encontrei o jogo como chave para comentar essa nada evidente passagem do Evangelho. O jogo e o sonho. As crianças jogam e, jogando, sonham. Felizes, brincam e imaginam. As palavras de Jesus faziam-me mais sentido. “Tornar-se como as crianças que brincam e sonham”. Como confirmação, lembrei-me de Francisco de Assis, um crescido que joga, que sonha e que canta como as crianças. Não será uma dessas criancinhas a quem pertence o Reino, porque se fez como elas? Se pensarmos bem, não será um jogo chamar irmão e irmã ao sol, à lua, à água e até à morte? Imaginemos brincar aos irmãos, sem que haja senhores nem escravos, sem que uns tenham tudo e outros tenham nada. E se falássemos corretamente aos pássaros e ao lobo que ameaça a aldeia, não nos compreenderiam? Sim, é verdade, sabemos que no mundo sério das pessoas crescidas, daqueles que usam conceitos rigorosos e que sabem tudo sobre organizações não é assim. Mas tentemos imaginar. Porque não? É só um jogo. Lembrei-me também da pequena Teresa de Lisieux, alta na estatura do sonho. Imaginemos com ela que somos um corpo. Cada pessoa é um membro. No caso de Teresa, depois de muito pensar que membro poderia ser, descobriu que poderia ser o coração. Sim, ela seria o coração. Começou a brincar sendo coração. O que faz o coração? Ama. Não é fácil?
Imaginemos que somos muito amados e que, surpreendidos continuamente por um amor imerecido, maior e permanente, também podemos amar, sem precisar de grandes porquês, como uma rosa que floresce só porque floresce.
Sim, nós, adultos, sérios, práticos, rigorosos e comedidos, sabemos que a realidade não é assim, que tudo é bem mais complicado. Mas, porque não imaginar? Imaginemos. Na verdade, se pensarmos bem, não é o Evangelho um jogo? Não é Jesus como as crianças? Imaginemos que somos muito amados e que, surpreendidos continuamente por um amor imerecido, maior e permanente, também podemos amar, sem precisar de grandes porquês, como uma rosa que floresce só porque floresce. Não importa se não somos belos, inteligentes ou ricos. Imaginemos que as regras básicas deste jogo são assim: quem ganha perde e quem perde ganha; quem der a vida aos outros, salva-se, e quem tirar a vida dos outros para salvar a sua, perde-se. Impossível? Talvez. O próprio Jesus brincou com este fogo e sabemos que se queimou. Mas também sabemos muito bem quais são os frutos da lógica do mundo e das regras de jogo que determinam o curso das coisas. Porque não tentar imaginar, então, possibilidades inéditas e brincar com estas outras regras do Evangelho?
Entretanto, terminaram as férias e, a custo, deixei o mar e a praia – mesmo com vento norte, deixa muitas saudades. O eco deste Evangelho e a imagem das crianças que sonham e brincam na praia vieram comigo. Regressado a casa, fui à procura de um livro precioso de um grande teólogo alemão de origem italiana, que viveu entre os séculos XIX e XX, chamado Romano Guardini. O livro é O Espírito da Liturgia. Como se percebe, é sobre liturgia, mas tem tudo a ver com isto. Tem um capítulo sobre o jogo: “A liturgia considerada como um jogo”. Pode ler-se assim: «a alma tem de aprender a não buscar em toda a parte o fim útil, a não pretender a todo o custo encontrar um fim para todas as coisas, a esquecer ser demasiado prudente e “adulta”; terá de aprender a…viver, sem mais; a renunciar, pelo menos na oração, àquela febre de atividade acesa e fustigada pela preocupação de alcançar o fim; a desperdiçar o tempo ao serviço de Deus; a não contar, nem pesar, no jogo sagrado, cada palavra, cada pensamento, cada gesto, sempre com a pergunta em suspenso: para quê e para que fim? Precisa de se resignar a não querer sempre fazer alguma coisa, alcançar alguma coisa, cumprir alguma coisa de útil. Precisa de se resignar a executar, sob os olhos de Deus, em beleza, liberdade e santa alegria, o jogo da liturgia que o próprio Deus regulamentou. Afinal, o que será a eternidade senão a realização perfeita deste jogo?».
Se Guardini tem razão, é a viver, sem mais, que o jogo ensina. As crianças não precisam de aprender. Já sabem e nunca se cansam. Somos nós, adultos, que desaprendemos à medida que vamos aprendendo a querer “sempre fazer alguma coisa”, a “alcançar alguma coisa”, a “cumprir alguma coisa de útil”. Imaginemos, por exemplo, que somos aves do céu que não semeiam nem colhem e a quem o Pai bom alimenta ou que somos lírios do campo que não fiam nem tecem e a quem o mesmo Pai bom reveste de beleza. Não é possível para quem lida com coisas sérias e tem contas para pagar? Talvez. Mas tentemos imaginar. As crianças fazem-no. Para elas, imaginar e jogar aos pássaros do céu ou às flores do campo é real. Para Jesus também.
Fotografia de Jeremy McKnight – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.