É quando ponho a segunda e sinto o Datsun a travar na descida
gosto tanto desta estrada
que me apercebo de que a «boa» música portuguesa é como a gastronomia, também nacional. Apreciá-la é, à partida, um processo demorado e sequencial.
Comida e música – não se gosta logo de tudo. É natural que não se goste logo de tudo. Ainda bem que não se gosta logo de tudo. Seria chato se se gostasse. Melhor do que gostar é aprender a gostar. De comida e de música – e, por vezes, de pessoas. Viver é ir gostando.
Mas sobre comida. Uma criança não pode adorar favas. (Atenção. Tudo pelas favas. Nada contra as favas.) Poder, até pode, mas é estranho. E, se não é estranho, é raro. Sabe-se de alguma? As crianças gostam de comida simples. Sei do que falo porque já fui uma. (As favas não entravam.) As suas barrigas não estão preparadas para receber pratos exigentes. As favas não têm lugar dentro daqueles corpos de leite, tão pequenos, como não têm a cabidela, a língua de vaca e salsicha com couve-lombarda. Eventualmente há um dia em que arranjam um espaçozito e não o largam. As crianças deixam de ser crianças
– Era tão esquisita
e o gosto muda: afinal gostam de favas e perguntam-se por que razão não gostavam. Não sabem. Estão mais criteriosas.
O espaçozito transforma-se num espaço que se dilata e que brada por pratos intensos que dão tanto prazer como trabalho digestivo. A partir daqui, têm espaço as favas, a cabidela, a língua de vaca e a salsicha com couve-lombarda – e todas as especialidades que, depois de mastigadas e engolidas, indiciam o sabor português, tão bom e tão forte. Sabe tão bem que apetece repetir (ser português duas vezes). É gula, mas é justa.
É a barriga que dita o crescimento das crianças. É a barriga que controla a cabeça – e não o contrário. A cabeça adapta-se meramente. Assim que começam a comer um pouco de tudo as crianças passam a ser protoadultos. Ainda não são adultos adultos porque ainda lhes falta saber tanta coisa, mas já têm mais ou menos noção da importância das boas refeições e dos sentimentos que projectam. O processo não é igual para todos, já que se pode dar mais cedo ou mais tarde, e nem todos passam por ele. Há quem seja esquisito para sempre. Não tem mal. Mais favas para quem as aprecia.
Acontece o mesmo com a música portuguesa. (Já se pode deixar cair o «boa». A qualidade, fiel à subjectividade, depreende-se.) O ouvido é como a barriga – rege-se também por regras próprias. Comida e música – primeiro estranham-se, depois entranham-se.
É então quando ponho a segunda e sinto o Datsun a travar na descida
gosto tanto desta estrada
que me apercebo da força de um tema erudito que quase sempre rejeitei. Vai-se lá saber porquê. Foi uma sorte tê-lo apanhado – ou terá sido ele a apanhar-me? Foi – isso é certo – o algoritmo preto e verde a fazer das suas.
Não sei como não passei o tema à frente
– Desta não gosto
na esperança de escutar outro de audição e gosto fáceis, já muito decorado e reproduzido vezes conta, como tantas vezes faço.
O facto de «Haja O Que Houver», do conjunto Madredeus, me ter chegado enquanto fazia a EN 247
Cascais – Colares
janelas abertas
o Atlântico prometido à espreita
é decisivo.
Se tivesse escutado a canção noutro contexto tê-la-ia desconsiderado. Como a escutei enquanto desenhava curvas silvestres com o meu Datsun e reflectia sobre a minha existência estival, apreciei-a. A canção revelou-se-me no momento e sítio certos. A música é assim que é – entra na nossa vida sem saber se pode entrar. Pode. Um dia, não gostamos dela; no seguinte, já gostamos. Não tem explicação.
A música é assim que é – entra na nossa vida sem saber se pode entrar. Pode. Um dia, não gostamos dela; no seguinte, já gostamos. Não tem explicação.
Gostei da entrada
finalmente gostei da entrada
já que a guitarra definiu o modo como a brisa da serra influía vagarosamente as copas das árvores. Agora gosto da entrada porque aprendi a gostar dela num instante certeiro e imprevisível. Gosto dela por ser tão bonita e calma e plácida e por introduzir a vocalista de forma sublime.
Desta vez o seu tom, muito próprio, não me importunou. Em tempos temi a voz de Teresa Salgueiro. Achava-a muito melancólica e muito triste. Pesadíssima. Agora acho-a muito eu e tu, muito nossa – muito portuguesa. Agora na melancolia e na tristeza que a voz carrega sinto que se guarda um felicidade enorme, própria de quem aceita esperar, não porque não tem outra opção, mas porque escolhe esperar. («Haja o que houver, eu estou aqui / Haja o que houver, espero por ti»). O que é esperar senão amar?, penso eu ao pôr a terceira. Lá vou eu no Datsun.
Esperamos pelo que amamos. E esperamos porque amamos. Amamos o Verão, o Atlântico, este país abandonado, o asfalto esverdeado, os dias azuis e húmidos, as bancas de jornal junto às praias enevoadas, os mergulhos longos, os risos à beira-mar e os sorrisos brancos, os que estão perto e os que estão longe, Deus, a oração e a vida que levamos e durante a qual crescemos, afinando a barriga e o ouvido.
Alguns amam também as favas – mas desconfio que as amam pelo que podem representar quando o tacho é partilhado. O amor português, bonito e intenso e pesado. O amor que, de vez em quando, pede uma sesta ou outra. O amor embala-nos e a música de Madredeus também. Adormecemos e passamos a viver no sonho.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.