Ainda há lugar para a educação inaciana?

Dadas as experiências existenciais de muitos jovens do século XXI, criar esperança é prioritário. A juventude cultiva hoje um imaginário formatado por narrativas distópicas.

Com a extinção dos Contratos de Associação, a ação educativa dos Jesuítas em Portugal enfrenta anos muito difíceis. Haja em vista o enorme esforço de sobrevivência em curso no Colégio das Caldinhas, em Santo Tirso, e no Colégio de Cernache, em Coimbra. Nem na vizinha Espanha a situação se afigura mais sorridente…

É à luz deste contexto que a Província Portuguesa recebe as chamadas Preferências Apostólicas Universais da Companhia de Jesus (2019-2029), onde se lê:

A. Mostrar o caminho para Deus mediante os Exercícios Espirituais e o discernimento;

B. Caminhar junto aos pobres, os descartados pelo mundo, os vulnerados em sua dignidade, numa missão de reconciliação e justiça;

C. Acompanhar os jovens na criação de um futuro cheio de esperança;

D. Cuidar da Casa Comum.

Usando da liberdade de opinião que neste espaço me é dada, não posso deixar de exprimir a minha satisfação por ver que, se os contratos de Associação foram suprimidos, a Companhia não suprimiu das suas prioridades a educação dos jovens (pois que lugar para “acompanhar a criação do futuro” senão a escola?).

 

Criar esperança nas margens existenciais
Apesar das enormes adversidades (políticas, humanas, ideológicas e financeiras), os Jesuítas apostam na sobrevivência daquelas duas instituições. Porém, é evidente que não é a sobrevivência das instituições que está em jogo. Não se trata de salvar a todo o custo um lugar no mundo escolar, mas sim continuar um projeto educativo que tem por centro o mistério do ser humano em vista da sua realização pessoal em toda as dimensões – e não necessariamente a competição para o mercado de trabalho, nem a escolha de uma certa carreira profissional, como muitos pais esperariam.  Aliás, um relatório de 2016 do Fórum Económico Mundial sobre “O Futuro dos Empregos” anteviu que 65% das crianças que entram no ensino fundamental vão acabar por trabalhar em empregos que atualmente não existem.

Dadas as experiências existenciais de muitos jovens do século XXI, criar esperança é prioritário. A juventude cultiva hoje um imaginário formatado por narrativas distópicas (i.e. anti-utópicas) de discurso pessimista, em que uma pequena elite exerce o seu imenso poder sobre a estupidez coletiva por meio da violência, sem qualquer aceno de esperança. “Os autores de distopias imaginam um futuro no qual os nossos medos mais profundos se tornaram realidade. Nem nos falta razão para o medo. Falharam instituições, falharam os líderes em quem confiávamos, falharam as soluções para os grandes problemas sociais” escreve Michael McCarthy, S.J., num artigo em que analisa precisamente uma destas narrativas distópicas com maior êxito no cinema, Carbono Alterado.

Nos fundamentos de todo o empreendimento jesuítico de educação está, pelo contrário, a reverência pelo mistério da pessoa humana. É por isso que eleger como prioridade Acompanhar os jovens (prioridade C) é já cumprir a prioridade B: Caminhar junto aos pobres, os descartados pelo mundo… É seguir o convite do Papa Jesuíta e ir ao encontro das margens, não só das margens económicas, mas também das margens existenciais: daqueles que perderam a fé e o contacto com Deus, ou que nunca ouviram a Boa Nova.

O magis inaciano
Quem está mais ou menos familiarizado com os colégios SJ conhece a referência ao magis na apresentação dos seus programas. O advérbio latino que significa “mais” parece evocar o lema das Olimpíadas: Citius, Altius, Fortius (“mais rápido, mais alto, mais forte”). O termo por si só pode inspirar todas as ambições, e também a olímpica; mas não é esse o sentido inaciano. Nos seus Exercícios Espirituais, Santo Inácio expõe a finalidade em função da qual todas as escolhas humanas devem ser feitas: “louvar, reverenciar e servir a Deus (…) e assim salvar a sua alma”. Tudo o resto – acrescenta – deve ser escolhido na medida em que conduza ao cumprimento desse propósito, devendo todo o nosso desejo “ser o que mais nos conduz (magis nobis conducant)” àquele fim para o qual somos criados (EE 23).

As Constituições da Companhia de Jesus exprimem uma lógica semelhante. Diante da multiplicidade de pedidos para que os jesuítas assumissem ministérios, Santo Inácio propôs um conjunto de critérios. O que justifica uma escolha em detrimento de outra é de novo o magis: “manter diante dos olhos o maior serviço de Deus e o bem mais universal”, i.e. aquele “Princípio e Fundamento” que alicerça o edifício dos Exercícios Espirituais e toda a vida apostólica da Companhia.

A correção das injustiças sociais é consequência necessária da evangelização. Uma das grandes conquistas do Vaticano II foi mostrar que a conversão a Cristo não significa fugir do mundo, mas amá-lo profundamente e acudir ao sofrimento concreto das pessoas.

Justiça social e evangelização
Transparece ainda de todo o documento o compromisso pela justiça social que tem caracterizado a ação dos Jesuítas. A correção das injustiças sociais é consequência necessária da evangelização. Uma das grandes conquistas do Vaticano II foi mostrar que a conversão a Cristo não significa fugir do mundo, mas amá-lo profundamente e acudir ao sofrimento concreto das pessoas. Seguir o Evangelho é trabalhar necessariamente pela justiça.

Questiono-me, contudo, se o compromisso com a justiça social será por si só suficiente para cumprir a vocação à evangelização. Um judeu, um muçulmano, um budista, um humanista agnóstico e até mesmo um ateu de boa vontade podem trabalhar juntos pela justiça social. Qualquer um pode dedicar-se completamente a um programa para cuidar dos pobres e mais fracos, sem comprometer-se em nenhum sentido com a fé em Jesus Cristo. Já o serviço jesuítico à educação terá de mostrar que a justiça social está enraizada em Cristo, no Evangelho e na consequente antropologia judaico-cristã, hoje evidentemente ameaçada. E tem excelentes meios para o fazer, herdeiro que é de uma experiência secular de atenção aos sinais dos tempos e às necessidades de mudança. Faz parte da tradição pedagógica jesuíta um ideal que responde a essa atenção: o ideal de eloquentia perfecta, ou seja, a capacidade retórica de comunicar uma mensagem a um auditório em particular, de modo a criar novas formas de compreensão e de empatia para operar em diferentes contextos culturais, incluindo o dos não crentes e dos novos ateísmos.

A sobrevivência das escolas jesuíticas dependerá pois da sua capacidade de comunicarem com um mundo pós-cristão e de se comprometerem com a especificidade da sua missão, que é buscar “aquilo que mais concorre para o fim para o qual fomos criados”.

Essa sobrevivência dependerá, por sua vez, da abertura dos novos públicos de estudantes e suas famílias (provavelmente menos numerosos) para investir na visão inaciana da educação, pois não há escolas sem alunos.

Ao discernir sobre os seus próprios recursos (nomeadamente no múnus da educação), a Companhia pode sempre reconduzir-se à sabedoria do seu Princípio e Fundamento, e assim escolher o que, entre muitas possibilidades, for “mais” propício ao fim para o qual ela foi chamada a existir. Escolha ela, pois, com ousadia e coragem inaciana. Também no tocante à sua missão na educação.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.