O sofrimento desacompanhado de tantas vítimas, crianças à altura dos abusos, veio, por fim, à palavra. Testemunhos vivos, bem mais duros do que quaisquer números e estatísticas, abriram os sigilos de um passado submerso, encoberto por múltiplos silêncios, de práticas irresponsáveis, de procedimentos negligentes, talvez cúmplices. Durante muito tempo, quando outras Igrejas já se confrontavam com a dura realidade, quisemos crer que não nos dizia respeito ou, simplesmente, não quisemos saber. Por má avaliação, por incapacidade ou por dolo, fizemos de conta, silenciámos a realidade, diminuímos-lhe o alcance. A pressão da opinião pública – incomode-nos mais ou menos, há que estar gratos ao jornalismo – teve como fruto a crescente tomada de consciência de que o que estava em jogo era muito grave e que se impunha dar voz ao silêncio e lugar à justiça. Sobretudo, forçou a que se lidasse com a realidade, não, em primeiro lugar, a partir do prestígio da instituição ou da falta moral dos agressores, mas das vítimas reais. Por isso, se passou a assumir como responsabilidade primeira atender à ofensa, ao dano e ao sofrimento que lhes foram causados. Por isso se tem vindo a afirmar a promoção de uma cultura de proteção e de cuidado e se criaram condições de confiança para escutar memórias pessoais desatendidas ou silenciadas e se puseram os meios para investigar arquivos coletivos. Por isso se continua a apelar à defesa do direito e à aplicação da justiça e se enfatiza que os pedidos de perdão têm de ser acompanhados por atos de reparação. Para quem é crente, pela voz sofrida de quem foi abusado, que viu ofendida a confiança e que reclama por justiça – os “pequeninos” ofendidos e escandalizados são uma categoria evangélica – ressoa a voz do próprio Deus que, para curar, põe o dedo na ferida.
Para quem é crente, pela voz sofrida de quem foi abusado, que viu ofendida a confiança e que reclama por justiça – os “pequeninos” ofendidos e escandalizados são uma categoria evangélica – ressoa a voz do próprio Deus que, para curar, põe o dedo na ferida.
«Ondes estás?», é a primeira pergunta de Deus na Bíblia, dirigida a Adão, à qual se segue uma outra, feita a Eva, «que fizeste?» (Gn 3,9.13). Um capítulo depois, a Caim, com as mãos já manchadas com o sangue de seu irmão, pergunta: «onde está teu irmão Abel?». E, de novo, «que fizeste?» (Gn 4,9-10). Estas são as perguntas das origens. São, por isso, as perguntas de sempre. A elas, a Igreja, o corpo todo e cada um dos seus membros, tem também, hoje, de responder. Nem todos são culpados, mas há responsabilidade coletiva por um legado comum a partilhar. Vale para o bem, vale também para o mal. A resposta que der dirá que Igreja é. Não responder, autojustificar-se, atenuar, repetir frases feitas, desejar que passe o mais rápido possível… também são respostas. No Evangelho de Lucas temos a resposta justa, a de Maria, mãe de Jesus: “Eis-me aqui” (cf. Lc. 1,38). É do lugar onde se está, seja ele qual for, que se parte. É deste húmus que nos elevamos para escutar dores e acusações, para tomar a palavra de forma franca, para agir responsavelmente.
Na constelação de questões que a matéria dos abusos levanta, que será incontornável atravessar para que a Igreja diga, hoje, “onde está/quem é” (cultura e estruturas organizacionais, clericalismo e exercício de poder, liderança e carisma, moral sexual e celibato, pecado e delito, perdão e reparação, entre tantos outros), destaco aqui o sacramento da penitência.
Não podemos deixar de nos questionar se uma visão distorcida deste sacramento e da sua prática também não terá sido testemunha cúmplice de abusos e desresponsabilizadora de consequências. Não me refiro, de todo, ao segredo de confissão. Refiro-me, sim, a uma possível patologia do sacramento que se manifesta quando permite que a vítima de um penitente que confessa o seu abuso seja, no fundo, tomada como cúmplice de um pecado que é identificado essencialmente como ofensa à castidade ou eventual quebra da regra do celibato. Tal pecado diria simplesmente respeito à relação do penitente com Deus, sem implicar estruturalmente, quer o dever de enfrentar pessoalmente a vítima e de reparar as feridas provocadas em quem foi violentado, quer a assunção de responsabilidade perante a lei civil e criminal. O registo espiritualizante, centrado na salvação, parece negligenciar facilmente a implicação e a cura do tecido “corpóreo” da vida pessoal e coletiva. Pergunto-me também se pedidos de perdão públicos por parte de responsáveis eclesiais, quando não são acompanhados por atos reais de reparação, segundo as necessidades das pessoas ofendidas, não serão, de algum modo, reflexo no espaço público desta mesma distorção do sacramento no foro privado. No fundo, bastaria confessar o pecado e ser absolvido da culpa para que o processo penitencial estivesse completo, quer no âmbito individual do sacramento, quer na relação com a opinião pública.
Na constelação de questões que a matéria dos abusos levanta, que será incontornável atravessar para que a Igreja diga, hoje, “onde está/quem é” (cultura e estruturas organizacionais, clericalismo e exercício de poder, liderança e carisma, moral sexual e celibato, pecado e delito, perdão e reparação, entre tantos outros), destaco aqui o sacramento da penitência.
A teologia deste sacramento é, porém, mais complexa e a sua prática tem um alcance existencial bem mais fundo. Precisaríamos, por isso, de retomar a teologia e de rever as práticas para recuperar o que é específico deste sacramento, que não é o perdão (este elemento partilha-o com o batismo, o crisma e a eucaristia, sacramentos da iniciação cristã), mas, sim, a iniciação do cristão perdoado à penitência que permita reparar as feridas causadas pelo pecado no corpo e no espírito. Tal exercício reveste especial importância, para que, no que diz respeito à vida cristã dos batizados, o sacramento da penitência – é este o seu nome – não se apresente como solução fácil, quase mágica, para feridas humanas profundas. De facto, trata-se, simultaneamente, de um sacramento de crise grave na vida de um cristão, causada pelo mau uso da liberdade, e de um sacramento de cura, que implica o compromisso da liberdade. É bem diferente entender o pecado grave como mancha ou como ferida, já que a mancha se lava rapidamente e com relativa facilidade, enquanto a ferida se cura com tempo, por meio de operações distintas e progressivas. Em segundo lugar, recuperar a íntima relação entre a absolvição da culpa e o caminho penitencial de reparação a que abre e que implica, evitará que a perceção externa que se possa ter desta prática não corresponda a um expediente de desresponsabilização, à margem da administração da justiça civil, já que a absolvição do pecado pareceria apagar, sem mais, a responsabilidade criminal e pareceria não comprometer estruturalmente com o dever de reparação a acontecer no tempo. Garantiria boa consciência individual e institucional, mas sem eficácia real e sem assunção de responsabilidades perante pessoas e a comunidade.
O sacramento, sabemo-lo, pressupõe, por parte do penitente, a contrição honesta do coração e a palavra franca e transparente que nomeia o pecado, para que haja uma palavra de autoridade do ministro ordenado que absolve da culpa. É neste registo de contrição-confissão-absolvição que, hoje, se tende a apresentar e a viver o sacramento. De resto, é assim que o Código de Direito Canónico o apresenta, como sequência de confissão e de absolvição (Can. 960). Porém, este sacramento pressupõe e implica mais, porque o que está em jogo não é simplesmente a culpa pessoal que é absolvida, mas também a pena que permanece, ou seja, as consequências negativas do pecado, quer na vida concreta do penitente (no modo como pensa, sente, age, se relaciona, vive…), quer em terceiros, quer no conjunto da comunidade eclesial, da sociedade e até mesmo da criação. Se há uma pena interior, uma dor a integrar, também há danos causados na vida concreta do próprio e de outros que caberá reparar. Ora, essas consequências, a que a linguagem sacramental dá o nome de pena temporal, precisam de ser assumidas e trabalhadas no tempo. A pena pede reparação e é para ela que remete a penitência recebida do confessor.
Porém, este sacramento pressupõe e implica mais, porque o que está em jogo não é simplesmente a culpa pessoal que é absolvida, mas também a pena que permanece, ou seja, as consequências negativas do pecado, quer na vida concreta do penitente (no modo como pensa, sente, age, se relaciona, vive…), quer em terceiros, quer no conjunto da comunidade eclesial, da sociedade e até mesmo da criação.
A prática comum, porém, acaba por reduzir a penitência a uma prática espiritualizada, quase irrelevante na estrutura ritual do sacramento, que se realiza habitualmente na forma de orações rápidas, sem especial alcance existencial. Porém, a penitência, que decorre do pecado perdoado e da absolvição da culpa, deveria traduzir-se num itinerário espiritual significativo, existencialmente relevante, exigente e com duração no tempo. Não se deve confundir, no entanto, com um qualquer ato jurídico que impõe um castigo que compense o dano causado. Diz, sim, respeito à distância que separa a contrição e o desejo de reorientar a vida como fruto do perdão recebido da experiência da força sedutora e ativa do pecado enraizado e das respetivas consequências no próprio, nos outros e na realidade. Por isto mesmo, no caso concreto dos abusos, temos consciência de que, à partida, não bastará o sacramento como lugar de absolvição da culpa, se não implicar o envolvimento na reparação da pena. Esta poderá implicar outras instâncias e competências de outra natureza, como a psicológica ou a psiquiátrica, como poderá implicar a assunção de responsabilidades perante a lei civil. A essa penitência poderia levar a absolvição da culpa. Seria insuficiente, por isso, se a absolvição não iniciasse um percurso penitencial e se este não implicasse múltiplas reparações. Tal como a aplicação da justiça não esgota o caminho existencial e espiritual do perdão, o perdão sacramental não dispensa da reparação que, em alguns casos, poderá implicar assumir livremente responsabilidades perante as vítimas e perante a lei.
Nota: Refletindo sobre o tema específicos das indulgências, pude desenvolver um pouco mais a distinção entre culpa e pena temporal, no quadro do sacramento da penitência. Poderá ser consultado aqui.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.