S. Tiago diz-nos que a sabedoria que vem do alto é pura, pacífica, modesta, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade, sem fingimento (Tg 3,17). Vivemos, porém, um tempo em que proliferam as tentativas de criar bodes expiatórios e de fazer acusações, como forma não só de aliviar as consciências, mas também de criar nuvens de fumo que possam dissimular os efeitos da indiferença e do relativismo ético. E a que assistimos? Exatamente ao contrário do que Jesus Cristo nos disse: “Quem não tem falta que atire a primeira pedra!” Chovem pedras, sobretudo de mãos anónimas, confundindo-se ação e dissimulação, designadamente para enfraquecer e anular a justiça. Não se olha a meios para atingir os fins. Para impedir as mudanças justas, acusa-se para bloquear, para confundir, misturando questões, à maneira dos fariseus – não importa o silêncio antigo dos que agora acusam – o que interessa é lançar areia para os incautos. Cultiva-se o método da amálgama…
Chovem pedras, sobretudo de mãos anónimas, confundindo-se ação e dissimulação, designadamente para enfraquecer e anular a justiça.
Sabemos como, no percurso de Jesus, o método funcionou. «Não importa que o não tenhas feito, outro fez antes de ti» – como Esopo descreveu à beira do riacho no diálogo entre o lobo e o cordeiro… A sabedoria antiga no-lo ensina, para que não haja dúvidas. Há pouco, Marcos lembrou o dia em que Jesus deixou a região de Tiro e, passando por Sidónia, “veio para o mar da Galileia, atravessando o território da Decápole. Trouxeram-Lhe então um surdo que mal podia falar e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele. Jesus, afastando-Se com ele da multidão, meteu-lhe os dedos nos ouvidos e com saliva tocou-lhe a língua. Depois, erguendo os olhos ao Céu, suspirou e disse-lhe: «Efatá», que quer dizer «Abre-te». Imediatamente se abriram os ouvidos do homem, soltou-se-lhe a prisão da língua e começou a falar corretamente. Jesus recomendou que não contassem nada a ninguém. Mas, quanto mais recomendava, tanto mais intensamente o apregoavam. Cheios de assombro, diziam: «Tudo o que faz é admirável: faz que os surdos oiçam e que os mudos falem»” (Mc., 7, 31-32).
Havia um homem surdo-mudo, incapaz de comunicar. E Jesus, discretamente, devolveu-lhe os sentidos. E usou o verbo abrir – como símbolo de uma atitude do coração. Mais do que dar o ouvido e a fala, permitiu a comunicação de agapé, o amor. E estamos perante a metáfora do encontro com o outro e o diferente – que constitui o cerne da mensagem da Boa Nova. Há poucos domingos, Jesus anunciava aos discípulos a paixão. E depara-se com incredulidade. Eis por que nos afirma: «Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me. Na verdade, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho, salvá-la-á».
O espalhafato não ajuda e é o seu uso e abuso que leva à procura doentia dos bodes expiatórios.
O que está verdadeiramente em causa é a compreensão do mandamento novo. Por isso, Jesus procura a discrição e o esclarecimento. O espalhafato não ajuda e é o seu uso e abuso que leva à procura doentia dos bodes expiatórios. De facto, o género humano é imperfeito, e temos de lidar com essa imperfeição – em lugar da tentação de não entender que o sábado se faz para as pessoas e não as pessoas para o sábado ou vendo a palha no olho do outro, mas não a trave na própria vista. E as passagens de Marcos relacionam-se com o anúncio de Isaías sobre a consumação dos tempos: «Então se abrirão os olhos dos cegos e se descerrarão os ouvidos dos surdos. O coxo saltará como um cervo e se desatará a língua dos mudos, assim como brotarão águas no deserto e jorrarão torrentes no ermo» (Is, 35, 5-6). Importa, no fundo, usar serenidade e sobriedade para dar à justiça civil o que lhe cabe no julgamento de crimes hediondos. Não se confunda a imperfeição e a essência da dignidade. Lembremo-nos do bom samaritano, da mulher adúltera, de Marta e de Maria, do encontro da fonte de Jacob, do filho pródigo, da parábola dos talentos…
Tudo nos obriga a pensar nos erros e pecados da Igreja e da Humanidade e a assumi-los – para que a universalidade da dignidade humana se não torne realidade vã.
Eis a lição do Papa Francisco: “Lembremo-nos como Jesus convidava os seus discípulos a prestarem atenção aos pormenores: – o pequeno pormenor do vinho que estava a acabar numa festa; – o pequeno pormenor de uma ovelha que faltava; – o pequeno pormenor da viúva que ofereceu as duas moedinhas que tinha; – o pequeno pormenor de ter azeite de reserva para as lâmpadas, caso o noivo se demore; o pequeno pormenor de pedir aos discípulos que vissem quantos pães tinham; – o pequeno pormenor de ter a fogueira acesa e um peixe na grelha, enquanto esperava os discípulos ao amanhecer” (Gaudete et Exultate, 144). Que significam estes pormenores? O cuidado, origem da palavra caridade, a atenção à diversidade e a recusa da tentação de fazer das leis absolutos, que podem pôr em causa a dignidade humana. Estejamos atentos, não deixemos de assumir as responsabilidades, aprendamos com os erros. Veja-se como o Evangelho defende a paz, o respeito mútuo e o direito à vida e recusa penas desumanas, como a pena de morte, ou a fome, a miséria e a ignorância. Tudo nos obriga a pensar nos erros e pecados da Igreja e da Humanidade e a assumi-los – para que a universalidade da dignidade humana se não torne realidade vã.
Atacar o Papa é atacar a Igreja. E se tudo confundirmos, tudo perderemos!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.