Com a crise económica em desenvolvimento, a situação de viver na rua não está tão longe como se pensa para muitas pessoas… O mercado habitacional, particularmente nos grandes centros urbanos, é cada vez menos acessível, e as situações de desemprego e de carências económicas, em agravamento, são catalisadoras de rutura familiar, em si uma das principais causas para viver na rua.
É um fenómeno já notório: vemos cada vez mais pessoas em situação de sem-abrigo a viver sem as mínimas condições.
Atualmente (e infelizmente), grande parte das instituições que apoiam a população sem-abrigo não tem capacidade para acolher mais casos, revelando um sistema de apoio com recursos escassos, inapto para enfrentar os desafios que a crise económica vai provocar a nível habitacional. É do interesse comum, especialmente num contexto de pandemia, o reforço institucional para garantir o acesso de toda a população a habitação condigna.
O crescimento da capacidade de resposta destas instituições depende do interesse e envolvimento da sociedade e de meios adicionais para desenvolverem as intervenções necessárias. Nesse sentido, é importante que os cidadãos portugueses (cada um de nós) tenham a ambição de contribuir para uma sociedade que se preocupa verdadeiramente em ajudar a população sem-abrigo através de soluções inovadoras. É confortável argumentar que muitos sem-abrigo não quererem ser ajudados, ou até que muitos não são “ajudáveis”. No entanto, independentemente da complexidade desta problemática, devemos partir do pressuposto que quem vive na rua necessita de ajuda para (voltar a) ser integrado na sociedade e de apoio para reconstruir as próprias bases.
O que tem força é o sentido de responsabilidade para devolver dignidade, tendo como ponto de partida a escuta ativa e o olhar atento.
Identifico duas atitudes por onde começar a trabalhar a nossa disponibilidade para ir ao encontro da população sem-abrigo. Em primeiro lugar, a importância de desconstruirmos os preconceitos e estereótipos que dificultam a integração deste segmento populacional na sociedade e tornam, muitas vezes, aceitável que não estendamos a mão. Em segundo lugar, o trabalho interior e contínuo no combate à indiferença, que o Papa Francisco tantas vezes nos interpela a realizar. Momentos pontuais de caridade, apesar de positivos, não são eficazes para alterar um modo de estar como a indiferença. Partilho convosco o novo modo de estar que tenho vindo a exercitar no meu quotidiano para combater a indiferença: a vigilância como meio para potenciar o encontro.
Ir ao encontro, oferecendo ajuda, não é apresentarmo-nos como salvadores do próximo (“sou tão bonzinho”), nem se trata de reciprocidade (“se eu estivesse na sua situação gostaria que alguém me ajudasse”), mas sim de (vermos) termos à nossa frente uma pessoa digna de uma vida melhor, sendo nosso dever facilitar esse processo (ex: direcionar população sem-abrigo para redes de apoio). O que tem força é o sentido de responsabilidade para devolver dignidade, tendo como ponto de partida a escuta ativa e o olhar atento.
A vigilância e o sentido de responsabilidade, que se alimentam mutuamente, desafiam a concretização do nosso papel como protagonistas da mudança: como é que no contexto específico da minha vida posso contribuir para a eliminação deste problema social?
Provoco, de seguida, com algumas ideias concretas. Como cidadão posso oferecer a minha ajuda junto de instituições que já se debruçam sobre a temática (doações, participação, voluntariado, …). Como pessoa dinâmica e criativa posso juntar um grupo de amigos com o objetivo de criar uma nova iniciativa de alojamento capaz de acomodar o crescente número casos nestas circunstâncias. Como aluno ou professor posso sugerir parcerias entre instituições de ensino e as instituições sociais (ex: implementar trabalhos de grupo que visam o desenvolvimento de soluções com impacto). Como trabalhador de uma autarquia local ou junta de freguesia posso sugerir a criação de projetos em parceria com faculdades (ex: projeto conjunto com alunos de arquitetura para a criação de projetos inovadores de requalificação de edifícios públicos abandonados com o propósito de realojar pessoas sem-abrigo). Como político posso priorizar a agenda que diz respeito à habitação (ex: identificar e apoiar iniciativas das comunidades locais e das populações que têm por objetivo resolver problemas habitacionais).
No fim de contas, este desafio social exige uma decisão de fazer (ou não) caminho para a construção de um país que não deixa ninguém para trás, capaz de garantir a todos o direito fundamental à habitação.
Fotografia de Mathias Konrath – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.