A 19 de agosto de 2009 comemorava-se, por primeira vez, o Dia Mundial da Ajuda Humanitária aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua sessão plenária de 11 de dezembro de 2008. Com esta resolução pretendia-se homenagear toda a ajuda humanitária e, sobretudo, todos aqueles que perderam as suas vidas no cumprimento das suas missões, no trabalho pela promoção da causa humanitária e no apoio às vítimas de conflitos armados.
Nos bastidores que levaram a esta resolução histórica esteve também o empenho da família de Sérgio Vieira de Mello e da Fundação que perpetua o seu nome. A 19 de agosto de 2003, Sérgio Vieira de Mello, Representante Especial do Secretário-Geral da ONU no Iraque, e 22 funcionários das Nações Unidas, morreram no ataque contra o Hotel Canal em Bagdad, no Iraque, que chocou o mundo e, de forma particular, Portugal. Conhecíamos bem Sérgio Vieira de Mello por ter liderado a missão da ONU em Timor Leste, quando este território dava os seus primeiros passos enquanto novo país.
Durante 2004, Annie Vieira de Mello, a sua viúva, dava início a encontros e discussões com personalidades das Nações Unidas, assim como com vários governos, para conseguir que fosse designado aquele trágico dia como o Dia Mundial Humanitário. No início de abril de 2008, a administração da Fundação Sérgio Vieira de Mello preparou um projeto de resolução com esperança de que fosse patrocionado e adotado pela Assembleia Geral.
Obtiveram o apoio de França. Suiça, Japão e Brasil concordaram em co-patrocioná-lo. Estes 4 países lideraram o longo e extenso debate e revisão na Assembleia Geral. Finalmente, a 11 de dezembro de 2008, o projeto de resolução foi incluído no projeto de resolução sueco “Omnibus” e aprovado pela Assembleia Geral, proclamando-se o dia 19 de agosto como o Dia Mundial da Ajuda Humanitária.
No ano passado, em 2018, foram mortos 139 trabalhadores humanitários em diferentes partes do mundo, outros 102 feridos e 72 sequestrados no cumprimento do dever.
Em 2009, na comemoração do seu primeiro dia, o Secretário-Geral lembrava que, no ano anterior, tinham sido mortos, sequestrados ou gravemente feridos, em consequência de ataques, 260 trabalhadores humanitários, o número mais elevado de sempre. A, então, Alta-Comissária para os Direitos Humanos, Navi Pillay, sublinhava nesse mesmo dia que “matar aqueles que tentam ajudar os outros é um crime particularmente desprezível”, acrescentando que, sem ajuda humanitária, os direitos humanos fundamentais de milhões de pessoas – nomeadamente o direito a obter asilo, o direito à educação e o direito à vida – lhes estariam negados.
No ano passado, em 2018, foram mortos 139 trabalhadores humanitários em diferentes partes do mundo, outros 102 feridos e 72 sequestrados no cumprimento do dever.
É impossível esconder que há muita ‘coisa’ má nisto que alguns designam de indústria humanitária. Má gestão de fundos, salários inimagináveis, manipulação de níveis de perigo para obtenção de subsídios de risco mais elevados, dias acrescidos de férias a cada 2 meses para combater o stress a que se está sujeito, grandes associações de potências ricas que se movem com doações em função do mercado…
Mas, há muita ‘coisa’ boa e é isso que gostaria de homenagear neste ano em que se comemora o 10.º aniversário do Dia Mundial da Ajuda Humanitária. São homens e mulheres, heróis anónimos, espalhados pelo mundo: são aqueles que incansavelmente fazem lobby para que se abram corredores humanitários que permitam socorrer as inúmeras populações vítimas e presas pela guerra, necessitadas de cuidados de saúde e de alimentação; são os primeiros a chegar a zonas onde de repente se instalou o absurdo e a sua presença e ação são capazes de dar uma nova razão para viver ao libertar a esperança que tinha ficado soterrada nos contínuos bombardeamentos, como canta o grupo australiano Farenheit 43 na música que compuseram para o Dia Mundial da Ajuda Humanitária de 2010, The Reason. Mas, hoje, parece que há mais uma missão que lhes está assignada: restabelecer a autoridade moral na defesa da vida humana diante das novas legislações que estão a aparecer e que a perderam.
Ultimamente, o papel dos humanitários, na defesa indiscutível da pessoa, tornou-se ainda muito mais claro quando têm que assumir o restabelecimento da autoridade moral na defesa da vida humana, através de atos muito concretos diante de legislações que a perderam, dispondo-se a correr o risco de ficar reféns/réus do juízo legal.
Hoje, são vários os humanitários que se arriscam a perder a liberdade, de uma forma impressionantemente livre, porque a nenhum preço arriscarão perder uma vida humana que possam salvar. A vida humana é para ser salva, sempre.
São homens e mulheres, heróis anónimos, espalhados pelo mundo: são aqueles que incansavelmente fazem lobby para que se abram corredores humanitários que permitam socorrer as inúmeras populações vítimas e presas pela guerra.
A base moral, ética, económica para qualquer sociedade, e entre Estados, é indiscutível: a vida humana é para ser protegida e salva, sempre. Esta premissa é intocável. Não se toca. No entanto, vivemos num tempo em que esta premissa, que nos protege e salva a todos, se tornou irrelevante, dividindo-nos em dois grupos: os que têm direito à vida e os que não têm direito à vida.
Ao homenagear estes homens e mulheres, estamos a reconhecer a dignidade do que fazem, mas também a declarar que todos temos direito à vida e é essa indiscutível orientação que queremos ter nas nossas relações pessoais, nacionais e, mais do que nunca, internacionais.
Creio que também é nosso dever reconhecer que dentro deste mundo humanitário, cujas missões são sempre temporárias – com princípio, meio e fim – estão os ‘humanitários’ missionários que chegam para ficar até ao fim, que não arredam pé em caso de perigo e rejeitam ser evacuados, que partilham o dia a dia das comunidades esquecidas e perseguidas, enfrentando com elas a dureza da indiferença internacional e a crueldade irracional a que estão tantas vezes subjugadas.
Segundo o último relatório da agência vaticana Fides, 40 missionários foram assassinados em 2018, enquanto em 2017 foram 23. Quase todos sacerdotes.
Quando no próximo dia 19 de agosto comemorarmos o 10.º Dia Mundial da Ajuda Humanitária, proponho que homenageemos, também, todos os homens e mulheres que, tendo a Deus como “patrão” não arredam pé e escolhem inevitavelmente a sorte dos seus irmãos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.