Criado no Porto em 2013 pela Mariana Abranches Pinto, o Grupo Ao 3º Dia destina-se a dar suporte a pessoas a viver situações de doença crónica e/ou oncológica. Tive o privilégio de o integrar quatro anos mais tarde, em Lisboa, e decidi então especializar-me em Psico-Oncologia.
Embora a maior parte das pessoas não precise de apoio psicológico para enfrentar uma situação oncológica de doença, há, no entanto, quem necessite de apoio especializado para ir conseguindo adaptar-se e integrar uma realidade nova e extremamente exigente.
Considerado o pai da Medicina, Hipócrates, em cerca de 400 a.C., observa que os tumores mamários têm a forma de pinças semelhantes às do caranguejo, ou “karkínos” (em grego), cancro. É, pois, uma doença conhecida desde há milénios.
O filósofo Empédocles (corria o ano 450 a. C.) recomendava a prática do aconselhamento, ou a “cura pela palavra”. Procurava, através da conversação, tratar pessoas com doenças físicas ou psíquicas, pois estas não eram abordadas de forma isolada.
No início do séc. XX a conotação e o estigma associados ao cancro, que equivalia a uma sentença de morte, obrigava a pessoa que tinha o ‘azar’ de o contrair a manter-se na sombra, pois vir à luz significaria o ostracismo.
O cancro era uma vergonha, um castigo de Deus. Não muito diferente de há mais de 2023 anos, quando um leproso tinha de tocar uma campainha a anunciar-se. Não bastava a doença. Tinha também de se sofrer a vergonha de se estar doente.
Infelizmente há quem ainda pense assim, duplicando o seu e o sofrimento de quem assiste impotente. Não se está doente por preço a pagar de escolhas passadas ou por remissão de faltas.
Pessoalmente evito utilizar a expressão doente (não querendo com isto pôr em causa quem o usa; muitos clínicos fazem-no carinhosamente). Creio que este termo pode reduzir a pessoa exclusivamente à doença, correndo o risco de nela se perder. Condiciona também a leitura em seu redor e pode encerrá-la ainda mais na situação que vive. Por muito impactante que seja, a doença não pode nem deve retirar-lhe o facto de, antes de tudo, ser Pessoa. Digna e única.
Pessoalmente evito utilizar a expressão doente (não querendo com isto pôr em causa quem o usa; muitos clínicos fazem-no carinhosamente). Creio que este termo pode reduzir a pessoa exclusivamente à doença, correndo o risco de nela se perder. Condiciona também a leitura em seu redor e pode encerrá-la ainda mais na situação que vive. Por muito impactante que seja, a doença não pode nem deve retirar-lhe o facto de, antes de tudo, ser Pessoa. Digna e única.
Dame Cicely Saunders foi uma das figuras de referência no cuidado integral da pessoa, inovando de forma decisiva o modo de tratar. Criou os conceitos de dor total e cuidado total e chamou a atenção para a necessidade inadiável e urgente do controlo da dor.
Em 1948, enquanto médica e assistente hospitalar, conheceu um refugiado (sobrevivente do gueto de Varsóvia), David Tasma, que veio a pedir-lhe para ser “uma janela do teu Hospice *”, doando-lhe para isso 500 libras. 19 anos e 500 mil libras depois cumpria a promessa que lhe tinha feito ao abrir o St. Christopher Hospice.
Este foi o primeiro espaço a ser construído com o propósito de acolher, tratar e melhorar as condições e qualidade de vida de pessoas com cancro. Cicely Saunders defendia essencial o profissional aprender a sentir com, mais do que a sentir como, a pessoa doente.
Saunders ia percebendo que o espírito se fortalece à medida que o corpo enfraquece.
Em meados do séc. XX a Psico-Oncologia desenvolve-se como uma disciplina estruturada de conhecimento. A Comunidade científica reconheceu a indissociabilidade entre o sofrimento psicossocial e o distress** gerado pelo aparecimento de cancro e os fatores psicológicos, comportamentais, emocionais, sociais e espirituais envolventes.
Por volta de 1970 nos EUA, Jimmy Holland intervém de forma especificamente direcionada ao suporte e apoio de pessoas em situação oncológica de doença. Com Julia Rowland, elabora uma obra essencial para a intervenção em Psico-Oncologia.
Em média são necessárias de uma a três semanas para a pessoa que recebeu um diagnóstico de cancro conseguir apreender totalmente o significado da informação recebida, e assim da extensão a que poderão chegar as pinças do seu karkínos. Precisa de tempo e chama a si todos os recursos de que dispõe para lidar com a miríade de sentimentos e emoções emergentes.
Em média são necessárias de uma a três semanas para a pessoa que recebeu um diagnóstico de cancro conseguir apreender totalmente o significado da informação recebida, e assim da extensão a que poderão chegar as pinças do seu karkínos. Precisa de tempo e chama a si todos os recursos de que dispõe para lidar com a miríade de sentimentos e emoções emergentes.
A Psico-Oncologia surge como uma componente obrigatória dos cuidados globais à pessoa com cancro e é uma área que investiga, trata e integra os aspetos psicobiológicos e psicossociais do cancro. Visa promover na pessoa a maior normalidade possível face às circunstâncias e intervir no seu ajuste emocional no decurso das diferentes fases da doença, baseando-se no desenvolvimento de estratégias de coping *** adaptativo.
À medida que vai crescendo, a pessoa tende a viver mais pacificada e serena, aceitando e reconciliando-se com a sua história de vida e com as suas circunstâncias. O tempo é o seu aliado natural. Mas o cancro, com tudo o que envolve, impõe um conjunto de situações e constrangimentos acelerador do tempo, que afinal pode já não ser todo o do mundo.
A evolução da Medicina, a partir da 2ª metade do século XX, passa a oferecer à pessoa diagnosticada com doença oncológica a possibilidade de uma nova esperança. A hipótese de sobrevivência foi-se tornando cada vez mais uma realidade, transformando-a tendencialmente numa doença crónica.
A hipótese de sobrevivência foi-se tornando cada vez mais uma realidade, transformando-a tendencialmente numa doença crónica.
Todavia, e segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), há uma variação significativa na disponibilidade de tratamento entre países com diferentes níveis de rendimento; o tratamento abrangente está disponível em mais de 90% dos países com um alto nível de rendimento, mas menos de 15% nos países de baixo rendimento.
Nas consultas de Psico-Oncologia na Liga Portuguesa Contra o Cancro, interrogo-me sobre a razão por que algumas Empresas afastam pessoas doentes e pessoas em remissão de doença.
Não descartando questões de ordem económica – há de facto momentos em que para elas não é de todo possível trabalhar [produzir], não haverá também desconhecimento?
Há alturas em que estas pessoas, superando heroicamente dores e múltiplos efeitos secundários de tratamentos difíceis, podem trabalhar. Ainda que fosse num horário reduzido ou mesmo online (como se tornou obrigatório para pessoas não doentes no confinamento obrigatório), sentir-se-iam úteis, ocupadas e a produzir. No entanto, e talvez porque se desconheça a sua real capacidade, humor, persistência, resiliência, não são chamadas.
Há alturas em que estas pessoas, superando heroicamente dores e múltiplos efeitos secundários de tratamentos difíceis, podem trabalhar. Ainda que fosse num horário reduzido ou mesmo online (como se tornou obrigatório para pessoas não doentes no confinamento obrigatório), sentir-se-iam úteis, ocupadas e a produzir. No entanto, e talvez porque se desconheça a sua real capacidade, humor, persistência, resiliência, não são chamadas.
A Nini, filha da Mariana do Grupo Ao 3o Dia, partiu muito recentemente. Ao saber que a sua doença era incurável, optou, sendo corajosa e amplamente apoiada pelos pais, por suspender os tratamentos, mantendo apenas os paliativos. A transbordar saúde de espírito, encarou a morte de forma natural e lutou para a despir dos usuais tabus. Sendo tão jovem – tinha 18 anos – foi exemplar no testemunho que deixou.
Um sobrevivente de cancro desenvolve não raro um crescimento existencial, uma nova forma de olhar a realidade, distinguindo de forma sagaz o essencial do acessório, e uma riqueza ímpar que só pode beneficiar a humanidade e, consequentemente, acrescentar mais valor ao mundo. A força do sobrevivente de cancro não deveria, assim, ser valorizada?
Quiçá nunca se atinja a perfeição nos cuidados prestados, não por incúria, mas porque a natureza humana está continuamente em processo, como uma obra inacabada.
Todavia, o esforço na procura constante de maior leveza e melhoria da qualidade de vida das pessoas mais vulneráveis, em todas as suas dimensões, poderia ser contínuo. Não só nos locais onde é suposto e que asseguram os cuidados de saúde, mas em toda a Sociedade.
Bibliografia consultada:
Albuquerque, E. e Cabral, A.S. (2015). Psico-Oncologia: Temas Fundamentais. Lidel-Edições Técnicas, Lda.
Saunders, C. (2013). Velai comigo. Watch with me. Inspiração para uma vida em cuidados paliativos. Universidade Católica Portuguesa Editora.
WHO – IARC. Latest global cancer data: Cancer burden rises to 18.1 million new cases and 9.6 million cancer deaths in 2018, Press Release nº263. Geneva: World Health Organization – International Agency for Research on Cancer, 2018.
Notas:
* Hospice – em português a palavra Hospício não traduz o significado pretendido. Mais do que um Lar, mas não um Hospital, seria o equivalente a uma Casa de Cuidados Integrados
** Distress – ou sofrimento emocional; descrição dos graus de sofrimento da pessoa que não se enquadram nos Distúrbios Psicopatológicos. Integram os níveis elevados de Depressão e Ansiedade
*** Coping – tentativa comportamental e/ou cognitiva para gerir (anular, reduzir ou tolerar) as situações avaliadas com stressantes
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.