No dia 14 de março de 2025, o Parlamento aprovou, por unanimidade, várias alterações legislativas, com o objetivo de “possibilita[r] que familiares e pessoas candidatas à adoção possam ser famílias de acolhimento e reforça[r] os direitos das crianças e jovens em acolhimento”. A discussão em torno da questão de as famílias de acolhimento (FA) poderem adotar a criança que acolhem já não é nova e uma proposta semelhante tinha sido chumbada, na anterior legislatura.
Porém, mais do que o dissenso político – que parece ter sido ultrapassado – em torno do tema, importa perceber o contexto em que surge e os desafios que se podem levantar, uma vez aprovada esta legislação. Não se trata de fazer um elenco exaustivo dos desafios e soluções, mas abordarei aqueles que me parecem ser os principais. Explicarei porque é que, apesar de todos os desafios e dificuldades, concordo com a aprovação desta proposta.
1) O acolhimento de crianças e jovens em Portugal
Em Portugal, quando uma criança está em perigo e se torna insustentável a sua manutenção na família biológica, é colocada numa de duas medidas possíveis: em acolhimento residencial (i.e., vai viver numa casa de acolhimento), ou em acolhimento familiar (AF) (i.e., vai viver com uma família de acolhimento).
A lei previa já que a criança devesse ser colocada preferencialmente em AF, uma vez que isso permitiria que esta crescesse num ambiente familiar, mesmo sendo privada de o fazer junto da sua família biológica. No entanto, perto de 95% das crianças e jovens retirados encontram-se em acolhimento residencial, deixando a solução do AF para apenas 5% das crianças e jovens acolhidos.
Num relatório da UNICEF de janeiro de 2024, Portugal surge mesmo como o país que tem a mais alta taxa de crianças em acolhimento residencial (nota 1). Aliás, nalguns países, verifica-se o exato oposto: é o caso da Irlanda, em que 90% das crianças e jovens acolhidos está em AF, com apenas 10% de acolhimento residencial.
Importa distinguir o AF da adoção. O primeiro é uma medida de colocação da criança ou do jovem de maneira temporária, até que se concretize o seu projeto de vida (e.g., regressar à família de origem ou ser adotado); a segunda é uma resposta definitiva (na qual se pode concretizar a projeto de vida da criança), através da qual se estabelece a filiação entre uma criança e a família que a adota.
Ainda que a taxa de AF seja baixa, esta tem aumentado nos últimos anos. Além de um esforço significativo feito pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, existe uma campanha a decorrer, que junta esta e outras entidades e que, segundo Clara Marques Mendes, atual Secretária de Estado com a pasta, tem permitido verificar um aumento de famílias candidatas ao acolhimento familiar. (nota 2)
Com o (curto) aumento de famílias de acolhimento, têm-se levantado questões relativamente a esta medida e ao contexto jurídico de que beneficia. Neste âmbito, levantou-se a questão de as FA poderem adotar a criança ou jovem que acolhem.
2) Enquadramento jurídico da questão
O regime de execução do acolhimento familiar previa que um dos requisitos para alguém se poder candidatar a FA era, precisamente, o de não ser candidato à adoção (artigo 14º/1 al. b). Ainda assim, existiam já decisões de alguns tribunais que concluíam que, apesar desta norma, à luz do princípio do superior interesse da criança, seria possível decretar a adoção da criança pela FA (se isso, efetivamente, correspondesse ao superior interesse daquela criança). Assim, havia alguma incerteza jurídica em torno desta questão.
Na anterior legislatura, foram levadas a votação propostas que consagravam a possibilidade de a FA adotar a criança. O grupo parlamentar do PS, com maioria à data, chumbou as iniciativas. Entre outros argumentos, avançava que as medidas de acolhimento familiar e de adoção são diferentes, desde logo porque a primeira é transitória e a segunda é definitiva.
Nesta legislatura, vários grupos parlamentares trouxeram, novamente, esta proposta, sendo o PS um destes grupos. Com a queda do Governo e a dissolução do Parlamento, houve um consenso que permitiu aprovar, por unanimidade, esta norma.
Importa referir que, apesar do foco deste artigo – bem como o foco mediático – ser a possibilidade de as FA adotarem, a proposta aprovada continha múltiplas disposições, introduzidas pelo PS, que procuravam “reforça[r] os direitos das crianças e jovens em acolhimento”. Destaco i) o reforço do apoio dado em meio natural de vida e introdução da possibilidade de a família biológica ser FA; ii) o direito de a criança ou jovem acolhido ver assegurado um terapeuta de referência pelo Ministério da Saúde; iii) a diferenciação positiva em todas as medidas públicas aplicáveis às crianças e jovens acolhidos; iv) a audição do Conselho Nacional Consultivo dos Jovens Acolhidos por parte da Assembleia da República.
3) Críticas deixadas a esta medida e desafios pela frente
i) A primeira crítica que tem sido deixada a esta alteração legislativa tem sido a de que as famílias poderão passar a recorrer ao AF como “via rápida” para a adoção. Como vimos, ainda existem poucas FA, ao passo que há muitas famílias candidatas à adoção (ainda que sejam famílias, muitas vezes, com muitas restrições, no que toca à criança que estão disponíveis para adotar, nomeadamente ao nível da idade que a criança pode ter). Poderíamos, então, assistir a uma migração destas famílias candidatas à adoção para se tornarem FA. Evidentemente, isso desvirtuaria o AF, na medida em que esta medida é, apenas, temporária, como vimos, e o que as famílias candidatas à adoção procuram é criar uma relação definitiva com uma criança, que venha a tornar-se seu/sua filho/a.
ii) Existe também a preocupação de que esta alteração à lei chegue numa altura que se preste particularmente à sua instrumentalização, como forma de aumentar os números do acolhimento familiar. Numa altura em que, como referi, existe uma campanha a decorrer, esta medida pode ser vista (e até usada) como incentivo às famílias candidatas à adoção para que se tornem FA, pervertendo, mais uma vez, a natureza do AF.
iii) Um outro desafio poderá ser o de não cair na tentação de comparar as condições da FA às da família biológica, exigindo à família biológica que se comprometa com metas impossíveis. Naturalmente, o processo que uma família tem de percorrer para se tornar FA é exigente e as FA terão de ser famílias estruturadas e com rede; muitas vezes, são até famílias diferenciadas, pertencentes a um meio socioeconómico mais elevado. Passando estas famílias a poder ser uma opção permanente, através da adoção, poderia estar-se a fragilizar mais ainda as famílias de origem destas crianças e jovens, que passariam a ter de competir com condições que não conseguiriam oferecer.
iv) Aponta-se ainda que um desafio que esta alteração à lei traz é a gestão de expetativas da criança ou do jovem. Sendo o AF uma medida transitória, deveria trabalhar-se as expetativas da criança ou do jovem, de maneira a que estes não vejam esta família enquanto sua – e.g., não deveriam tratar as figuras de referência da FA por “Pai” ou “Mãe”, porque não deveriam vê-los enquanto tal. No entanto, passando a ser possível que esta família o adote, a gestão de expetativas da criança deixa de ser tão simples.
v) Ao nível da gestão de expetativas, um outro desafio poderá ser a gestão que é feita aquando da formação e acompanhamento das FA. Até aqui, a FA entrava neste processo sabendo que a resposta a que se candidatava era exclusivamente temporária. É natural que, num processo em que a vinculação afetiva deve existir, a gestão de expetativas da própria FA seja uma preocupação a atender. É importante que todos os intervenientes possam beneficiar de alguma previsibilidade em processos como estes, por tutela dos interesses dos próprios, mas também por forma a garantir o superior interesse da criança. É difícil que este seja salvaguardado sem cuidar, também, da FA.
vi) Levanta-se, ainda, a questão de perceber se o nosso sistema está já apto a dar resposta a todos os desafios que, tecnicamente, se vão levantar com esta nova possibilidade (nota 4).
4) Resposta às críticas
Parece-me claro – e até consensual – que para várias crianças e jovens a possibilidade de serem adotados pela FA é algo que corresponde ao seu superior interesse. Note-se que, de acordo com o Relatório CASA, que faz a caracterização do acolhimento em Portugal, em 2021, enquanto a duração média de um acolhimento residencial era de 3,5 anos, a duração média de um AF era de 5 anos (nota 5). Assim, para um jovem que esteja em AF durante esses 5 anos, desde a sua infância até à sua adolescência, verificando-se a impossibilidade de regresso à família de origem, e atendendo à vinculação profunda com a FA que poderá ter desenvolvida, poderá ser do seu superior interesse que seja adotado por essa família.
Havendo casos em que essa possibilidade deve estar em cima da mesa, por ser a melhor solução para a criança ou jovem, parece-me que devemos ter um quadro legislativo que permita essa hipótese. É certo que parece ser mais fácil responder aos desafios anteriormente referidos com a proibição de adoção pelas FA – é mais simples. Mas implicaria assumir que haveria crianças no nosso país que estão, à partida, legalmente impossibilitadas de ver concretizado aquele que seria o melhor projeto de vida para elas, e isso não me parece minimamente razoável. É por isso que entendo que deve ser uma possibilidade em cima da mesa a de que a FA possa adotar a criança, se isso corresponder ao seu superior interesse.
É certo que parece ser mais fácil responder aos desafios anteriormente referidos com a proibição de adoção pelas FA – é mais simples. Mas implicaria assumir que haveria crianças no nosso país que estão, à partida, legalmente impossibilitadas de ver concretizado aquele que seria o melhor projeto de vida para elas, e isso não me parece minimamente razoável. É por isso que entendo que deve ser uma possibilidade em cima da mesa a de que a FA possa adotar a criança, se isso corresponder ao seu superior interesse.
Um ponto que me parece central nesta discussão é o de não transportar para o campo do quadro legislativo aquilo que pertence a um nível de intervenção técnica ou de aplicação do Direito pelos tribunais. De facto, no meu entender, a resposta a várias das questões que acima referi passará por soluções ao nível técnico, que devem ser trabalhadas pelas equipas técnicas, nomeadamente as que fazem a seleção e o acompanhamento das FA, e não tanto pela legislação. Outras respostas passam por uma dimensão jurídica, não ao nível do enquadramento jurídico, mas antes ao nível da aplicação do Direito, que é feita pelos tribunais.
De facto, recai sobre as equipas que fazem o recrutamento e seleção das FA a responsabilidade de perceber qual a verdadeira motivação das famílias candidatas. Devem ser estas equipas quem filtra as famílias com capacidade de se envolverem neste processo, deixando pelo caminho aquelas que, mesmo que não o digam (ou saibam), querem é ser pais/mães – essas devem manter-se, apenas, candidatas à adoção. Esta avaliação é de uma grande complexidade e deixa margem para grandes dúvidas, mas é algo que já é feito – sempre foi preciso filtrar famílias que se candidatam a FA mas que o que queriam era adotar. Esta lei pode aumentar o número de candidatos que o fazem, mas não introduz, propriamente, uma novidade, a este nível.
Também as expetativas de todos os intervenientes – criança ou jovem, família de origem, FA e possível família candidata à adoção – devem ser trabalhadas pelas várias equipas técnicas competentes. É certo que é mais fácil dizer do que fazer, mas. verdadeiramente, este desafio enquadra-se, no meu entender, enquanto um desafio técnico, que não obsta a que exista no nosso ordenamento jurídico a disposição que foi aprovada.
Quanto às questões relativas à comparação das condições oferecidas pelas FA face às famílias de origem, importa dizer que essa tentação existia já, antes da aprovação desta alteração. Sempre existiu o risco de retirar crianças às suas famílias, podendo, depois, decretar a adotabilidade das mesmas, de maneira a que fossem adotadas por famílias diferenciadas. Os tribunais são os garantes de que isso não aconteça e, na visão que tenho do nosso sistema, se de alguma coisa podem ser acusados os tribunais, é de darem demasiada preferência à família biológica e não o contrário. De facto, muitas vezes assistimos a crianças e jovens cuja concretização do projeto de vida se arrasta no tempo, mantendo-se a criança em acolhimento residencial por vários anos por insistência do juiz, para que se dê mais uma oportunidade à família de origem. Acredito que a alteração à legislação não comprometa esta visão.
É evidente que existem muitos riscos – elenquei alguns deles – mas há, normalmente, a tendência de olhar apenas para os riscos trazidos pela alteração que é introduzida, sem os comparar com os danos que estavam a ser causados pelo anterior quadro jurídico. Optar pelo enquadramento jurídico anterior, na sua incerteza jurídica e limitação do melhor projeto de vida de algumas das crianças e jovens, parece-me corresponder a um nivelar por baixo. Parece-me preferível optar pela legislação que permite, em abstrato, dar resposta a mais crianças e jovens, ainda que criando mais desafios ao sistema, do que manter um enquadramento mais limitado que elimina os desafios, mas, com eles, também a possibilidade de concretizar a melhor opção para várias crianças e jovens.
Finalmente, quanto à questão de saber se o nosso sistema está à altura destes e outros desafios que possam decorrer desta alteração, parece-me que a resposta é afirmativa. Não querendo simplificar a questão – que de simples não tem nada – os desafios que se levantam não me parecem ser novos, na sua essência. Além disso, o caminho de alargamento do AF tem sido feito com alguma gradualidade nos últimos anos, o que tem permitido ir afinando a resposta a algumas destas questões. Será essencial que o Estado vá capacitando as equipas para que possam dar uma resposta de qualidade a todos estes desafios e que o AF seja, efetivamente, uma prioridade. Apesar da instabilidade do atual quadro político, a preocupação com o AF foi assumida tanto pelo atual Governo (PSD-CDS) como pelo anterior (PS).
Termino alertando para o facto de que o Sistema de Promoção e Proteção de Crianças e Jovens em Portugal, onde se integra o acolhimento residencial e familiar, está confrontado com inúmeros desafios e limitações, e esta questão, apesar de ser a mais mediatizada, não me parece ser nem a mais urgente, nem a mais preocupante no momento. É importante que se ponha cada vez mais no centro da discussão pública a proteção da infância e os direitos das crianças. Mantenho a esperança de que esta campanha eleitoral possa pautar-se pela discussão destes temas.
(nota 1): Veja-se o relatório Pathways to better protection, disponível em https://www.unicef.pt/media/4184/unicef_report_pathways-to-better-protection_v6-compressed.pdf.
(nota 2): Veja-se o primeiro episódio do podcast “Vidas Invisíveis”, uma parceria da Renascença com a Candeia, disponível em https://open.spotify.com/episode/0AM84XFX1p18SewbEr8veL?si=4c6c87b095cf4600.
(nota 3): Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 139/2019, de 16 de setembro.
(nota 4): Veja-se um recente artigo, no jornal Público, disponível em https://www.publico.pt/2024/12/31/opiniao/opiniao/adocao-familias-acolhimento-direito-sera-crianca-2117072.
(nota 5): Note-se que o Relatório CASA é publicado, anualmente, mas 2021 foi o último ano em que se fez a distinção entre a duração média das medidas de AF e acolhimento residencial. Está disponível em https://www.seg-social.pt/documents/10152/13200/Relat%C3%B3rio+CASA_2021/d6eafa7c-5fc7-43fc-bf1d-4afb79ea8f30.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.