Na memória de 2020, permanecerão os rastos de uma experiência inédita, para as mais recentes gerações, nas democracias liberais: o confinamento e a forte limitação de liberdades individuais, num contexto de crise de saúde pública. Com cenários e escalas diversas, as nossas sociedades viveram, nos últimos meses, períodos mais ou menos estritos de «lockdown». No quadro desta inédita experiência social, a casa revelou-se para muitos um lugar de novas aprendizagens. Os lugares de confinamento têm sido, paradoxalmente, contextos de criatividade social, palcos para gestos por um mundo melhor. Ao lado da destruição, no rasto da perda de vidas, da vulnerabilidade social e da crise económica, descobrem-se indícios de uma resistência pela palavra. A partir de casa, humoristas, atores, cantores, poetas, investigadores, jornalistas, personalidades religiosas «empalavraram» o mundo – seguindo um termo utilizado pelo pensador catalão L. Duch. Tratava-se de tomar a palavra para ensaiar o sentido do que se vive.
O ano de 2021 projeta-se abraçando a possibilidade de uma solução técnica e sanitária para a crise global que nos assola. Mas essa expectativa não preenche todas as demandas de sentido. Num ensaio recente, «Frente ao contágio» (2020), o físico Paolo Giordano observa que, perante a epidemia, parece que apenas sabemos contar: contamos os infetados, os internados, os curados, os mortos, contamos os desempregados, os milhões de perdas em bolsas, o número de aviões que ficam em terra. O autor sugere que aprendamos a contar os dias, para darmos valor a cada dia que passa, citando o Salmo 90 (89).
Na ótica do filósofo, perdemos as práticas culturais que dão estabilidade à vida, face à histeria da sobrevivência: «na preocupação exclusiva com a sobrevivência, assemelhamo-nos ao vírus, este morto-vivo que só se reproduz, ou seja, que só sobrevive sem viver».
Na linha do seu habitual pessimismo metódico, o filósofo Byung-Chul Han, em «O desaparecimento dos rituais» (2020), sublinha que, no quadro da presente crise de saúde, a vida é despojada de qualquer narrativa de sentido. Deixa de ser «narrável» para ser apenas «mensurável», «contável»: a vida fica nua, e mesmo obscena», favorecendo novos regimes de vigilância biopolítica. Na ótica do filósofo, perdemos as práticas culturais que dão estabilidade à vida, face à histeria da sobrevivência: «na preocupação exclusiva com a sobrevivência, assemelhamo-nos ao vírus, este morto-vivo que só se reproduz, ou seja, que só sobrevive sem viver».
Em Portugal, durante o período de confinamento, decretado no final de março de 2020, as reuniões para o culto conheceram um período de suspensão. Embora com algumas resistências marginais, as autoridades religiosas cooperaram ativamente na mobilização dos crentes para este «lockdown». Ponto culminante, em termos sociais, desta experiência inédita, a celebração do 13 de maio, no Santuário de Fátima, decorreu sem peregrinos. Uma celebração televisiva, com os ministros de culto e um número mínimo de fiéis, num santuário-deserto, preencheu a emblemática noite de vigília, na principal peregrinação deste santuário – num gesto inédito, o reitor do Santuário pediu aos peregrinos que ficassem em casa. Neste contexto, as diferentes comunidades católicas, e de outras confissões, passaram a difundir celebrações sem a presença física das comunidades, através das redes sociais digitais.
Na observação de diversas situações de transmissão da missa, usando as ferramentas live das redes sociais digitais, vale a pena dar atenção aos comentários dos participantes virtuais. Duas formas de implicação se revelam recorrentes: as observações empáticas em relação ao discurso (homilia) do padre e as expressões de satisfação pela oportunidade de vencer a distância. De facto, nestes contextos, é difícil documentar que a participação se possa descrever a partir das características próprias da ação ritual. A transposição da sequência ritual para este novo «médium» parece não ser suficiente para recompor a sintaxe ritual em toda a sua ordem simbólica. A anulação do habitat comunitário próprio do rito limita o seu alcance simbólico. Por outro lado, a missa, reduzida a um só actante (por vezes, com um «resto» comunitário presente), acaba por se concentrar nos atos de fala, em particular naqueles que podem assumir, mais claramente, uma relação com o praticante virtual (como é o caso da homilia). Em certa medida, nestas circunstâncias, é sobretudo a ordem da oralidade que é implicada.
A missa, reduzida a um só actante (por vezes, com um «resto» comunitário presente), acaba por se concentrar nos atos de fala, em particular naqueles que podem assumir, mais claramente, uma relação com o praticante virtual (como é o caso da homilia).
Vale a pena recordar que, num dos textos mais comentados da sociologia do final do século XX, a obra «Believing without Belonging» (Crer sem Pertencer), de Grace Davie, a autora observava que as emissões religiosas televisivas – “Igreja das ondas” – eram o exemplo acabado do crer-sem-pertencer por excelência. Os dados estudados mostravam que as emissões religiosas mantinham, entre os britânicos, importantes níveis de audiência. Como observava a socióloga, as Igrejas podiam alegrar-se pelo facto de um programa como «Songs of Praise» poder ombrear, quanto às audiências, com «Match of the Day». Mas esse sucesso não conduzia mais crentes às práticas comunitárias.
O fenómeno do culto na modalidade de «live streaming» tem sido lido de forma plural: alguns veem nestas circunstâncias críticas o rasto da destruição das comunidades e da dissolução da experiência ritual; outros preferiram ler esta experiência inédita como uma oportunidade para estabelecer novas alianças (sobretudo alianças pela palavra) e para reinventar uma «liturgia» das casas, reforçando a possibilidade de recompor uma experiência orante e ritual a partir do espaço doméstico, enquanto lugar simbólico. Permanece uma hesitação: vivemos um contexto de recomposição da atividade ritual ou uma aceleração do que Byung-Chul Han apelidou, num ensaio de 2019, de ««desaparecimento dos rituais»?
As teorias do rito, em particular, nas suas modalidades clássicas, dão prioridade à sua caracterização como ação simbólica: os rituais representam e transmitem valores que dão coesão às comunidades. Enquanto ação simbólica, o rito visa juntar («synballein»), gerar alianças, integrar numa comunhão que está para além da existência individual. Nesta perspetiva, o diagnóstico de Byung-Chul Han é claro: a des-simbolização e a des-ritualização fomentam-se reciprocamente.
O manejo dos ritos torna um determinado lugar habitável. Saint-Exupéry, no romance «Citadelle», descreve os rituais como técnicas temporais de instalação num lugar: «Os ritos são no tempo o que a morada é no espaço. Pois é bom que o tempo que transcorrer não nos dê a sensação de que nos gasta e nos perde […]. É bom que o tempo seja uma construção». Nesta perspetiva, o rito está ao serviço da construção dos lugares habitáveis e parece pouco conciliável com a experiência do fluxo constante. Esta perspetiva encontra eco em Roland Barthes, que associa os rituais às práticas do estar-em-casa: «A cerimónia […] protege, como uma casa: torna o sentimento habitável». O luto e os rituais funerários são os exemplos mais eloquentes. Não é por acaso que o rito está, frequentemente, associado à experiência de uma certa lentidão. A lentidão ritual resiste à pressa do consumo e acompanha a ressonância das coisas. A comunidade ritual é um corpo de ressonâncias. O rito não pode apressar-se porque é narrativo e não aditivo. Por seu lado, a comunicação sem comunidade, própria da era digital, pode acelerar-se, porque funciona por meio da adição ou da hiperligação.
Não temos ainda um arquivo de informação suficiente para analisar, de forma ampla, os resultados do recente investimento na transposição de sequências rituais para os «social media». Hesita-se entre a celebração de um tempo de regresso à palavra e a consciência da erosão dos rituais comunitários. É, certamente, uma oportunidade para reforçar as alianças pela palavra. Mas é também uma ocasião favorável para uma releitura cristã do papel dos ritos na construção de pertenças e na recriação de sentidos para os tempos da crise. Que este tempo não esvazie em nós o desejo de religação, no gesto e na copresença, sob pena de nos tornarmos viajantes sem-abrigo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.