A “Paixão” de Francisco (I)

12 anos depois, o Papa Francisco parece estar disponível para tudo, para continuar connosco ou para partir. Francisco ama a terra e ama o céu, ama o tempo e a eternidade, acolhe cada um e abriga-se no Sagrado Coração de Cristo.

Celebramos 12 anos da eleição do Papa Francisco. Do primeiro dia, sereno, na varanda da Basílica de S. Pedro, até hoje, indefeso, na cama de um hospital, Francisco continua a surpreender-nos: na força e na fragilidade, na audácia e na paciência, no rasgo e no abandono. Quem é este homem convicto e dialogante, pobre e esperançado, que escolheu viver em Santa Marta e viajar até às periferias do mundo? Desde que foi eleito, o Papa Francisco abriu formas mais colegiais de exercer o seu ministério na Igreja, suscitando, de forma progressiva, uma série de processos de discernimento e renovação, pessoais e institucionais, próprios de quem vê e avalia para além do imediato e acredita que Deus garante à Igreja um futuro de esperança.

Francisco assume-se como um “pecador” salvo pelo amor de Deus e deseja que aconteça em si mesmo, e se possível previamente, a conversão a que convoca toda a Igreja, enchendo-a da misericórdia do Senhor. Livre das formas mundanas e clericais de poder, Francisco torna a igreja mais católica e santa. A Igreja, nas suas vicissitudes, pode ser grande ou pequena, jovem ou veterana, o que não pode é ser fútil, mundana ou falsa. A sua “redenção” não depende dos dias memoráveis da sua história passada, dos melhores tratados de teologia, da humildade indiscutível dos seus santos. A restituição da sua autoridade e do seu lugar no teatro do mundo dependerá da credibilidade da sua renovação, colocando-se como “hospital de campanha” ao serviço dos mais frágeis, a começar pelos que foram vítimas de abuso e prepotência.

Francisco anda a curar paralisias crónicas que se instalaram e a remover as portas dos sepulcros onde a Igreja se “aprisionou” num único modelo, para que, renascendo, se faça ao largo e em saída. A Igreja de Francisco não vive para se defender ou atacar. Fiel ao evangelho, como Cristo, existe para dar vida e sentido. Não vale tudo, mas a Igreja faz-se com todos e para todos. É este espírito pascal, que resiste a todas as sombras e “dúbias”, que a torna credível, transcendente e lhe dá um novo vigor. Vinho novo em odres novos.

Francisco não é consensual. Algum Papa foi? Escandalosamente, e ferindo a unidade do corpo de Cristo, alguns dos seus críticos mais ruidosos não o têm poupado, para escândalo do povo de Deus. Francisco não os trata como inimigos e, tal como Jesus quando foi contestado, segue serenamente o seu caminho. Francisco é limpo, transparente, não tem “agendas” ocultas, interesses particulares ou de regime, não procura o seu prestígio. Francisco é transformador. O “pecado” de Francisco foi assumir e procurar cumprir, dentro da Igreja, o Vaticano II.

12 anos depois, o Papa Francisco parece estar disponível para tudo, para continuar connosco ou para partir. Francisco ama a terra e ama o céu, ama o tempo e a eternidade, acolhe cada um e abriga-se no Sagrado Coração de Cristo. Não vê na morte uma ameaça nem na ressurreição um prémio. Respira Deus e vive imerso na Sua bondade. Pede-lhe tudo e não o “obriga” a nada.

Francisco é paciente. Sabe que a Igreja precisa de mais tempo para acolher e integrar as medidas do seu espírito renovador. À imagem do semeador, espera que os seus sucessores possam colher o fruto maduro das suas propostas e investimentos. Nada do seu magistério é em vão. O seu amor à Igreja é imbatível.

Francisco é paciente. Sabe que a Igreja precisa de mais tempo para acolher e integrar as medidas do seu espírito renovador. À imagem do semeador, espera que os seus sucessores possam colher o fruto maduro das suas propostas e investimentos.

Vejamos, para conhecer melhor o Papa que Deus deu à sua Igreja, numa primeira parte ( Paixão de Francisco I), o contexto histórico que precedeu a sua eleição e alguns aspetos da sua vida e do seu perfil. Numa segunda parte (Paixão de Francisco II), veremos as linhas mestras que orientam o seu pontificado transcendente e inovador.

1. O legado e a renúncia de Bento XVI

A maior perseguição à Igreja não vem de inimigos de fora, mas surge do pecado dentro da Igreja, e a Igreja tem uma profunda necessidade de reaprender a penitência, de aceitar a purificação, de aprender o perdão, por um lado, mas também a necessidade de justiça. O perdão não substitui a justiça.” (Entrevista de Bento XVI na viagem para Portugal, 11.05.2010).

Quando o Cardeal Ratzinger foi eleito Bento XVI, assumindo-se como “ humilde servo da vinha do Senhor”, não gozava de muito “boa imprensa”. O então responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé era visto por muitos como “estreito”, “conservador”, um “tímido” convencido e nem a sua indiscutível sensibilidade e superior inteligência fazia atrair sobre si o “beneficio da dúvida”. No entanto, não foi preciso muito tempo para que as suas palavras fossem recebidas como “oiro”, para a Igreja e para o mundo. Destaco em particular as encíclicas Deus é Amor de 2005 , Salvos na Esperança de 2007 e a Caridade na Verdade de 2009.

Polémicas não faltaram. Recordemos os “casos vatileaks” que envolviam as finanças do Vaticano; a explosão do escândalo dos abusos sexuais, em particular do fundador dos Legionários de Cristo e a situação dramática na Igreja da Irlanda; o discurso de Ratisbona e a relação com os muçulmanos quando afirmou que “a violência está em contraste com a natureza de Deus e a natureza da alma”; as tensões com a Igreja da América Latina, em especial com algumas teologias da libertação, atenuada com a viagem de “reconciliação” ao Brasil e a célebre Conferência de Aparecida; a tentativa de diminuir o cisma dos “lefebvrianos”, ultra conservadores, que rejeitaram as reformas do Vaticano II, quando Bento XVI decidiu perdoar os bispos lefebvrianos para acabar com o escândalo da divisão e foi “traído” neste processo por quem negava o holocausto e a perseguição aos judeus durante a segunda guerra mundial.

Sabemos que a sua viagem a Portugal em 2010 e a onda de respeito e de carinho com que foi recebido foi um “bálsamo” no meio de todas estas tensões.

A sua renúncia, que foi tudo menos um abandono, caiu como “um relâmpago num céu sereno”. Anunciada no dia 11 de fevereiro de 2013 e justificada, nas suas palavras, de “falta de vigor, seja do corpo, seja do ânimo“ surpreendeu o mundo e abanou a “ideia” de um Pontificado ad vitam, para sempre.

Bento XVI mostrou uma consciência humilde de si mesmo e das condições de governabilidade da “barca de Pedro” inimaginável para quem desconhecia ou duvidava da sua discreta grandeza. Místico da liberdade de Deus e exímio defensor da cultura da verdade contra a “ditadura do relativismo”, deu à Igreja e aos senhores do mundo um sinal absolutamente exemplar de despojamento.

O seu amor resistiu a todos os “corvos” que o tentavam imobilizar e condicionar a barca da Igreja e fez dele um peregrino em clausura, mostrando-nos a importância apostólica da oração, fazendo da sua doença e da sua fragilidade “um lugar de beleza”.

Bento XVI poderá, um dia, ser declarado “doutor da Igreja”? Seria nobre e justo. Queira a Igreja completar o que Deus nele começou.

2. Bergoglio – de Jesuíta a cardeal

“A nós, pastores, pede-se que sejamos homens de oração e penitência para que o povo fiel possa encontrar-se com Deus … com atitudes de humildade e serviço … bem sabemos que, neste trabalho pelo Reino, estamos assediados por tantas tentações de mundanidade” (Homilia do Cardeal Bergoglio na missa de abertura da 98° Assembleia da Conferência Episcopal Argentina, 2009).

Este caminho raro, de jesuíta a cardeal, embora tenha acontecido algumas vezes, por determinação dos próprios Papas é, segundo as Constituições da Companhia de Jesus, desadequado, face à missão dos jesuítas na Igreja e no mundo, a missão de servir as comunidades e não a de governar dioceses.

Jorge Bergoglio nasceu em 1936, numa família de emigrantes italianos. Depois de estudar Química, decidiu entrar na Companhia de Jesus, em 1958. Terminada a sua formação, sendo ainda muito jovem, foi chamado para Mestre dos Noviços e, nesse mesmo ano, dado o seu grande valor, com apenas 36 anos, foi nomeado “precocemente” Provincial da Argentina, num contexto político muito difícil.

A Argentina vivia tempos terríveis com a ditadura militar e a Companhia atravessava uma significativa crise de vocações. Bergoglio, a partir do Colégio Máximo, “inventou” um novo modo de propor o Evangelho à juventude, juntando práticas devocionais antigas com ações arrojadas de voluntariado junto dos mais pobres e perseguidos. Esta junção deu muitos frutos e trouxe à Companhia de Jesus um momento de enorme esperança.

A Igreja e a Companhia não se podiam esconder ao ver tantas pessoas a serem perseguidas, torturadas e mortas. O número de desaparecidos era impressionante. Em nome do Evangelho, muitos sacerdotes, religiosos e religiosas atravessaram-se contra a crueldade do regime, correndo também eles o risco da própria vida. Alguns talvez se tenham implicado politicamente demasiado; outros, talvez por medo, mesmo sofrendo, não foram capazes de se opor à brutal injustiça de uma ditadura que, inclusive, procurava aprovação eclesial.

O que fazer neste cenário de alta tensão social e política? Bergoglio teve que lidar com situações extremas, defendendo jesuítas perseguidos, que se acharam pouco protegidos pelo seu provincial, acusando-o inicialmente de estar conivente com o regime, acusação entretanto desmentida pelos próprios, quando, ao mesmo tempo, sentia que o cerco se apertava e que a ditadura militar desconfiava que escondesse e protegesse muitos dos que estavam condenados a desaparecer sem deixar rasto, como se constata na “Lista de Bergoglio”.

Foi o Papa João Paulo II que o nomeou Bispo Auxiliar e mais tarde Arcebispo e Cardeal de Buenos Aires, por sugestão do Cardeal Quarracino, que conheceu Bergoglio quando visitou Córdoba e ficou admirado com a capacidade deste jesuíta “sereno e preciso”.

Depois de ter deixado de ser provincial, foi destinado ao Colégio Máximo e às faculdades de Teologia e Filosofia de São Miguel. Assumiu também a paróquia de S. José e começou a preparar uma tese doutoral sobre Romano Guardini, razão pela qual partiu para a Alemanha.

Regressado à Argentina, Bergoglio viveu um “exilio” institucional e deixou de ser chamado para cargos de governo na Companhia de Jesus. No entanto, a sua influência entre os jesuítas continuava muito grande, sendo acusado de dividir a província. Neste tempo, Bergoglio reconheceu que viveu “uma grande crise interior”. Durante esta “noite escura” nunca se julgou melhor do que ninguém. Triste, perplexo, mas nunca revoltado, “calou-se” e viveu o seu “sábado santo”. Lenta e sofridamente, foi renascendo das próprias cinzas. O que mais lhe doía era ver como alguns se dividiam ou se separavam por causa do seu nome.

Foi o Papa João Paulo II que o nomeou Bispo Auxiliar e mais tarde Arcebispo e Cardeal de Buenos Aires, por sugestão do Cardeal Quarracino, que conheceu Bergoglio quando visitou Córdoba e ficou admirado com a capacidade deste jesuíta “sereno e preciso” .

Bergoglio conservou sempre um estilo de vida simples, acessível, próximo de todos, sobretudo dos mais pobres, tornando-se numa referência eclesial em toda a América Latina. Dizia “o meu povo é pobre e eu sou um deles”. Em dez anos, Bergoglio passaria do “exílio” de Córdoba para a figura mais destacada da Igreja na Argentina e na América Latina. Dizem alguns que já no consistório que elegeu Bento XVI o seu nome teve um número considerável de votos, tendo tido a arte de não se deixar eleger, pedindo aos seus “indefetíveis” que votassem em Ratzinger. Quem poderá garantir-nos que foi mesmo assim?

3. Francisco, o Papa que veio de longe

“um homem que, a partir da contemplação e da adoração de Jesus Cristo, ajude a Igreja a sair de si própria para as periferias existenciais, que a ajude a ser a mão fecunda que vive da doce e reconfortante alegria da evangelização” (palavras do Cardeal Bergoglio, pensando no próximo Papa, antes do Conclave que o elegeu)

Quando um dia, creio que em 1995, perguntaram ao P. Luís Rocha e Melo se havia algum jesuíta no mundo que pudesse ser Papa, a resposta surpreendente foi: “só se for o Cardeal Bergoglio”. E foi mesmo.

Depois de uns dias de pré-conclave sobre o estado do mundo e da Igreja, os Cardeais traçaram um “perfil” e um “caderno de encargos” para o próximo Papa, fosse ele quem fosse e, reunidos em Conclave, elegeram Papa, por uma larguíssima maioria de votos, longe das táticas políticas e mediáticas, o Cardeal Bergoglio, vindo “do fim do mundo”.

 

Ousa a coerência do Evangelho, questiona as estruturas mais rígidas do Vaticano e quer ajudar a construir uma Igreja despojada, “em saída”, comprometida com o mundo, promotora da fraternidade humana, íntegra e credível para ser o que propõe, para viver o que anuncia, a primeira a converter-se, para que as suas estruturas irradiem o Evangelho da misericórdia e da esperança.

Nas Congregações prévias ao Conclave, quando usou da palavra, Bergoglio traçou também ele o perfil ideal para o próximo Papa afirmando: “um papa dinâmico, que tenha um rosto alegre e seja a cara de uma Igreja mãe, fecunda, doce e consoladora na alegria de evangelizar”. Nessa intervenção, Bergoglio descreveu o seu modelo de Igreja e, sem pretendê-lo, fez o seu próprio autorretrato.

Em Itália, poucos esperavam esta eleição, inclinados que estavam para o Cardeal de Milão. Alguns ficaram aflitos sem razão, outros ficaram deslumbrados pois não imaginavam que na Igreja pudessem existir cardeais com este perfil humano e espiritual. A Igreja, sábia e confiante, acolheu como graça a sua eleição e sentiu que algo de “novo “ estava a começar quando o viu pela primeira vez à varanda de S. Pedro, rezando por Bento XVI e pedindo ao Povo de Deus que o acolhesse e abençoasse.

Bergoglio escolheu o nome de Francisco, inspirando-se em S. Francisco de Assis, obrigando-se, assim, a nunca se poder esquecer dos “mais pobres”, como lhe foi sugerido pelo Cardeal Hummes.

Francisco não quis ser um Papa rei, um imperador; quis e quer continuar a ser um Papa Cristo, um Papa pobre, um Papa servo de Deus. Ousa a coerência do Evangelho, questiona as estruturas mais rígidas do Vaticano e quer ajudar a construir uma Igreja despojada, “em saída”, comprometida com o mundo, promotora da fraternidade humana, íntegra e credível para ser o que propõe, para viver o que anuncia, a primeira a converter-se, para que as suas estruturas irradiem o Evangelho da misericórdia e da esperança.

Francisco não era um carreirista, um cardeal do sistema. Era e é um homem profundamente livre, que fez da liberdade de Deus a sua verdade e nesta encontrou o fundamento que orienta o seu modo de viver e de decidir. A sua “agenda” é escutar o Espírito e cumprir a vontade do Pai.

 

(Este artigo continuará, em breve, com a Paixão de Francisco II)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.