A Oeste nada de novo

Um espectro ameaça a Europa e não é o do Comunismo. Oitenta anos depois a guerra volta ao coração do velho continente. Resta perguntar: será que não aprendemos nada com o passado?

Um espectro ameaça a Europa e não é o do Comunismo. Oitenta anos depois a guerra volta ao coração do velho continente, precisamente quando se extinguem e vão desaparecendo os últimos sobreviventes da II Guerra Mundial, sejam combatentes ou vítimas dos campos, e que a memória desse momento tenebroso da história se vai esfumando. Essa deterioração da memória é visível no modo como todos aqueles com menos de setenta anos, nascidos após 1945 já em tempo de paz, a dão como adquirida; bem como no recrudescimento, um pouco por toda a Europa, dos movimentos de extrema direita que do Mediterrâneo aos Urais se manifestam. Estes movimentos extremistas aproveitam o caos e a desordem, a insegurança e as crises, oferecendo respostas simples para problemas complexos que jamais conseguiriam resolver, mas que não têm pejo em agravar. Alimentam-se do descontentamento e dos paradoxos e fraquezas da democracia que desprezam.

E é isto 2022.  Depois da Peste, a Guerra. O que há de diferente das guerras na Bósnia e no Kosovo travadas nos anos 90 é que nenhum dos diretamente envolvidos era uma potência nuclear, pormenor que tornou então possível a (controversa) intervenção da NATO. Não será assim agora. O estatuto nuclear da Rússia coloca-a a salvo de uma intervenção militar direta. Os ucranianos terão de resistir e lutar sozinhos. Contra a propaganda russa fizeram, porém, prova de vida, dando pleno sentido ao direito de autodeterminação dos povos consagrado na Carta das Nações Unidas, e à ideia de nação descrita por Anderson, que a concebe como uma comunidade socialmente construída, imaginada pelas pessoas que se concebem como parte desse grupo; e onde os media e a partilha de uma mesma língua desempenham um papel fundamental.[1]

Se a Ucrânia e os ucranianos não eram ainda uma nação, com cria e divulgava a propaganda Russa, mas uma ficção inventada, sê-lo-ão depois desta bárbara invasão, com as suas batalhas, os seus mortos, os seus heróis, e os feitos de uma narrativa e história comuns partilhadas.

Não parece haver como parar esta guerra, e é absolutamente urgente que ela pare. Por estes dias, impressiona a desfaçatez que generais, oligarcas e belicistas do teclado têm ao mandar os filhos dos outros matar e morrer na guerra. Pensam que são originais, corajosos e irreverentes, não hesitando na hora de sinalizar virtude. Todas as guerras têm os seus Kantorek, o insignificante mestre-escola que levou uma turma inteira de crianças a alistarem-se.

Em 1929 Erich Maria Remarque publicava A Oeste nada de novo, um relato vívido e aterrador da sua experiência como soldado nas trincheiras alemãs durante a primeira guerra. Deixou-nos o retrato acusador de uma geração de adolescentes que se perderam numa guerra cruel, injusta e irracional, e cujo sofrimento e destruição faríamos bem em não ter esquecido.

“Como é inútil tudo quanto já foi escrito, feito e pensado, quando não se conseguem evitar estas coisas! Devem ser mentiras e insignificâncias, quando a cultura de milhares de anos não conseguiu impedir que se derramassem esses rios de sangue e que existam aos milhares estas prisões, onde se sofrem tantas dores. Só o hospital mostra realmente o que é a guerra.

Sou novo, tenho vinte anos, mas só conheço da vida o desespero, a angústia, a morte e a prisão a um abismo de sofrimento da mais superficial e da mais insensata existência. Vejo que os povos são atirados uns contra os outros e se matam em silêncio, ignorantes, tolos, submissos e inocentes. Vejo que os cérebros mais inteligentes do mundo inventam armas e palavras para que tudo isto se faça com mais requintes e dure ainda mais tempo. (…) Nosso conhecimento da vida limita-se à morte. Que se pode fazer, depois disto? Que será de nós?”[2]

Tristes anos 20 do século XXI. Sabemos tudo, mas não aprendemos nada.

 

 

[1] Benedict Anderson, 1983, Comunidades Imaginadas, Companhia das Letras.

[2] Erich Maria Remarque, 1971, A Oeste Nada de Novo, Edições Europa América.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.