Na sua obra póstuma Simone Weil (1909-1943) estabelece os fundamentos de uma nova sociedade pós-guerra. No contexto atual, em que somos confrontados com sucessivas crises – económicas, sociais, ambientais e sanitárias –, a sociedade carece urgentemente de um novo paradigma antropológico.
As grandes crises atuais são precedidas de uma série de sinais cada vez mais alarmantes, que exigem uma atenção imediata, séria e consequente. Assim, importa definir um plano de ação, começando naturalmente pelo diagnóstico das enfermidades que atingem o mundo atual. Seguidamente, identificar quais as intervenções ou terapias mais adequadas e, finalmente, executá-las e implementá-las. Estes planos e estratégias de ação são necessários e urgentes não só na área saúde, mas também nas áreas da economia, do ambiente e, fundamentalmente, da antropologia e sociologia. O desrespeito por qualquer destas áreas da realidade humana traz consigo consequências que poderão transformar-se em graves clivagens sociais e profundos desequilíbrios ao nível planetário. E de nada valem os discursos populistas ou totalitários. Os discursos e a linguagem devem traduzir e encarnar a realidade e não o contrário. A realidade humana não é passível de ser submetida a discursos que não respeitem a urgência de um mundo mais justo e sustentável.
A realidade humana não é passível de ser submetida a discursos que não respeitem a urgência de um mundo mais justo e sustentável.
Penso concretamente no que se refere ao efeito estufa com implicações à escala do globo. As mudanças climáticas tem-se traduzido e expressado através de fenómenos extremos e devastadores. E é precisamente com o objetivo e a esperança de evitar o pior que alguns Centros de Investigação de elevado prestígio se têm dedicado a identificar, monitorizar e investigar, não só o que vai ocorrendo, mas sobretudo procurando definir práticas, modos de produção e formas de agir. Esta preocupação também tem sido objeto de reflexão por parte dos líderes mundiais, traduzindo-se em tratados internacionais que apontam o ano de 2050 como dead line para a transição da neutralidade carbónica. É claro que os ponteiros do tempo não param e não é por afirmarmos a necessidade que automaticamente as coisas mudam. De nada adianta que os media propalem até à exaustão a necessidade de mudança se ao nível técnico e político nada se fizer. Penso também na atual pandemia, nos seus efeitos gravosos, com repercussões desconhecidas, que se irão arrastar no tempo. Penso também nas crises migratórias e económicas à escala global, que ciclicamente põem a nu a fragilidade dos sistemas.
Dizer que o ser humano é caracterizado pela itinerância rumo à plenitude não é o mesmo que dizer que se comporta como um fugitivo, evitando constantemente o encontro consigo próprio. Navegamos na net e no telemóvel; navegamos nas vias rápidas e nas autoestradas; navegamos recorrendo a agências de viagens que nos prometem cenários idílicos ou exotéricos; navegamos nos hipermercados e centros comerciais, satisfazendo necessidades fictícias; navegamos para exibir perante os outros que estamos em sintonia com a moda; navegamos no nosso ego, buscando emoções raras, quer abusando do outro quer mediante o consumo de estupefacientes. Procedendo deste modo confundimos a realidade com o virtual. Urge distinguir o utópico profético mobilizador daquilo que nos deixa cada vez mais insatisfeitos e aprisionados.
São quase dois anos de pandemia, verdadeira guerra mundial, e a nível da Cimeira do Clima COP 26 não se registaram avanços significativos. Sobrepor sucessivos remendos não resolve, continua a ser uma solução provisória. Os próprios analgésicos enganam e atrasam o verdadeiro diagnóstico, impedindo a terapia apropriada. Há que atacar o problema na sua raiz. Se o sistema mundial se encontra doente, ciclicamente os sintomas acabam por se manifestar. Na sua obra póstuma, O enraizamento. Prelúdio para uma declaração dos deveres para com o ser humano, Simone Weil pretendeu lançar as bases de uma nova sociedade. Significativo o subtítulo: em vez de uma declaração dos direitos do homem trata-se de uma declaração dos deveres para com o homem, também deveres de cada um para consigo mesmo e para com os outros. Está aqui implícita uma tradução para hoje dos mandamentos da lei.
Nesta obra, antecipando-se mais de 50 anos, Simone Weil faz o diagnóstico duma enfermidade, que Zygmunt Bauman analisa na obra de título emblemático Modernidade líquida, publicada em 2000. De facto, ao perder as raízes, perdemos a identidade e tornámo-nos líquidos! A ordem foi subvertida e virou-se contra o ser humano, quando ao ostentar-se a si mesmo, se constituiu em medida de todas as coisas. Também Etty Hillesum (1914-1943), alma gémea de Simone Weil, se empenhara em transcrever cuidadosamente para o seu Diário (1941-1943) as descobertas que poderiam mostrar-se úteis no pós-guerra.
É muito elucidativo a estrutura do Enraizamento, que constitui o testamento de Simone Weil. Considera simultaneamente a dimensão antropológica que está na base de tudo e a dimensão sociológica que decorre da primeira.
É muito elucidativo a estrutura do Enraizamento, que constitui o testamento de Simone Weil. Considera simultaneamente a dimensão antropológica que está na base de tudo e a dimensão sociológica que decorre da primeira. O ensaio Enraizamento desenvolve-se em três partes:
Na primeira parte, Simone Weil identifica 14 necessidades da alma: a ordem, a liberdade, a obediência, a responsabilidade, a igualdade, a hierarquia, a honra, o castigo, a liberdade de opinião, a segurança, o risco, a propriedade privada, a propriedade coletiva, a verdade. Como no início duma nova criação, ao expor sucessivamente cada uma destas necessidades, invariavelmente é retomado o refrão: “… é uma necessidade/alimento indispensável/vital/essencial/sagrado à alma humana”. A alma tem sido reiteradamente esquecida. Não apenas a alma enquanto sinónimo de psíquico, mas “a parte mais secreta da alma humana”. Invertendo o provérbio: “alma sã, em corpo são” a autora considera que há que cuidar primeiramente da alma, para que o corpo social possa ser saudável. Sem estes requisitos não pode haver enraizamento a nível pessoal e menos ainda a nível social. Para perceber devidamente o que é a alma para Simone Weil, haveria que recorrer a outros escritos dos últimos tempos que complementam o Enraizamento (1943) nomeadamente A gravidade e a graça (1940-1942) e à Espera de Deus (1942).
Na segunda parte, é identificada o desenraizamento como a patologia que atinge a sociedade moderna e se manifesta especialmente no desenraizamento operário, desenraizamento camponês e no desenraizamento que acaba por atingir a própria nação. Tenhamos presente o contexto histórico desta obra, a crise a nível económico e social, que acabou por desencadear a segunda guerra mundial.
Na terceira parte, é visado todo um processo de cura a ser desenvolvido com a vitória dos aliados, no final da segunda grande guerra. Trata-se do enraizamento que tendo como ponto de partida cada nação, se estende sucessivamente a toda a humanidade. Na medida em que o enraizamento for tido em consideração, então – e a autora insiste nisto – o trabalho passa a revestir-se de uma dimensão espiritual. Trata-se duma perspetiva saudável e libertadora do trabalho. Apesar de ter morrido com apenas 34 anos, Simone Weil dedicou-se a variadas atividades profissionais: professora de filosofia, operária na Renault, operária agrícola, escritora, sindicalista, resistente, etc. Deus trabalha para criar o mundo (Genesis) e desde então não pára de trabalhar continuamente (Evangelho segundo S. João). Para Inácio de Loiola (Exercícios Espirituais 230-237), Deus “habita e trabalha” na realidade e desafia cada ser humano a colaborar neste processo mediante o qual o reino também se vai instaurando.
Fotografia: Arun Geetha Viswanathan – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.