As clivagens, sendo perigosas, têm uma virtude: tornam mais claras as posições e impelem a que nos afirmemos, a que saíamos do “morno”. Uma das clivagens atuais é entre a narrativa de que vivemos num mundo que, apesar de tudo, nunca esteve tão bem – elevada esperança média de vida, acesso a bens e serviços essenciais, mobilidade e comunicação facilitada, comodidades e funcionalidades tecnológicas que nos facilitam a vida, etc. – e que os problemas que enfrentamos enquanto sociedade devem-se “apenas” à sobrepopulação, às migrações e à incompetência individual, culpando as pessoas pelas desgraças próprias e alheias por considerarem-nas falhas de valores, força e pensamento; e a narrativa de que o mundo atual vive num contexto de injustiça estrutural, numa espiral de decrescente relação, de crescente desigualdade, crescente armamento e crescente degradação ambiental, que gera situações pessoais e coletivas inaceitáveis e que não augura nada de bom para o futuro.
Da minha parte, sempre estive mais próximo desta segunda narrativa do que da primeira, agora mais do que nunca. Não será este o lugar para o justificar com detalhe, mas veja-se, por exemplo, o que vivemos. Apesar de todo o otimismo e esperança de renovação próprios do tempo de Natal e do começo de um novo ano: (1) acabámos 2019 com uma COP 25 que nos trouxe a (esperada) desilusão em termos da possibilidade dos líderes mundiais saírem do seu lugar atual de hipocrisia e – finalmente – acordarem que a questão climática é efetivamente uma emergência e que há que atuar já em termos estruturais; (2) começamos 2020 com um assassinato internacional à distância, ordenado por um presidente dos EUA que se julga e afirma dono do mundo e que consegue assim, duma só vez, aliviar a pressão interna sobre a sua própria pessoa (e talvez até marcar pontos em relação às eleições deste ano) e provocar a reação desproporcionada de todo um povo, alimentando este sentimento de guerra mundial latente e (re)criando um clima de instabilidade e incerteza propício a todas as pessoas e interesses que defendem a importância do reforço da despesa em segurança e armamento acima de tudo (e de quase todos).
Na verdade, tenho para mim que uma das figuras mais inspiradoras em termos de contra-cultura, desobediência e desafio das regras estabelecidas é Jesus Cristo (e depois os seus discípulos).
Neste contexto de injustiça estrutural, assumindo-a não apenas como circunstancial, mas como cultural, o esforço e trabalho pela justiça tem necessariamente de ter capacidade para se assumir e ser “contra-cultura” – não há outra forma! Na mesma linha de pensamento, uma educação que se pretenda transformadora tem de passar necessariamente pela aprendizagem da desobediência – não uma qualquer desobediência, mas a que confronta a injustiça e a hipocrisia e assim se revela construtora de novas possibilidades, de novas sociedades. Partindo dum referencial de valores profundamente trabalhados e da formação de uma consciência (auto)crítica capaz de, em relação, ver o positivo, mas também reconhecer e denunciar o negativo, desobedecer revela-se um exercício de lucidez e de liberdade, originado pela obediência a uma outra lógica, a uma outra “cultura”, assumindo o preço a pagar por esse desafio ao estabelecido.
Na verdade, tenho para mim que uma das figuras mais inspiradoras em termos de contra-cultura, desobediência e desafio das regras estabelecidas é Jesus Cristo (e depois os seus discípulos). Uma das “transversalidades” dos Evangelhos é exatamente a desobediência e o questionamento dos vários status quo do local e da época – está presente desde o princípio até ao fim de cada um. Tão contra-cultura, desobediente, desafiador e incómodo foi, que os poderosos e hipócritas já não aguentavam mais com ele, tiveram medo e mataram-no. Tão contra-cultura, desobediente, desafiador e incómodo foi, que abriu as portas de uma nova cultura, de uma nova relação.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.