Um recente artigo, publicado no Expresso, dá conta de um estudo sobre a violência verbal, na infância. A grande conclusão do estudo não diz muito, por si só, mas pode surpreender os mais céticos: a violência verbal pode causar tantos danos quanto a violência física ou sexual. Mais, comportamentos que vemos serem adotados, por tantos adultos, na relação com crianças e jovens, levam ao aumento do risco de consumo de substâncias aditivas, prisão, desenvolvimento de baixa autoestima ou situações de autolesão por parte das crianças e jovens. Falamos de comportamentos, infelizmente, tão banais como gritar, chamar “estúpido”, dizer “és inútil” ou “não fazes nada bem”.
A constatação de que a violência verbal é um fenómeno tão presente na relação com as crianças e jovens, à qual acresce a gravidade dos efeitos que tem neste mesmo público, deveriam, por si só, servir de alerta para a sociedade. Porém, parece-me que há uma questão prévia a que devemos dar atenção para melhor combater o fenómeno da violência verbal e o respetivo impacto. Não será uma constatação original, mas a questão a que me refiro é a de que a sociedade – e o direito – são mais permissivos com a violência não física (onde se inclui a verbal) do que com a violência física.
Vejamos. Ainda no plano da relação entre maiores de idade, basta pensar que, mesmo numa situação de conflito, não é socialmente aceite bater ou causar qualquer lesão física, mas a mesma censura não se aplica a gritos ou insultos. Pensemos, por exemplo, num qualquer conflito no trânsito: aceitar-se-ia que um condutor saísse do carro para insultar outro que com ele colidiu, mas não se aceitaria que lhe batesse. Quanto à relação adulto-criança, está, hoje, claro que a violência física não é uma opção. Tomemos o caso de um professor: não lhe é reconhecida a possibilidade de bater às crianças ou jovens que acompanha, mas são muitos aqueles que insultam ou humilham os alunos, com uma pretensa intenção corretiva.
Quanto à relação adulto-criança, está, hoje, claro que a violência física não é uma opção. Tomemos o caso de um professor: não lhe é reconhecida a possibilidade de bater às crianças ou jovens que acompanha, mas são muitos aqueles que insultam ou humilham os alunos, com uma pretensa intenção corretiva.
Também do ponto de vista jurídico, encontramos expressões dessa tendência. Comparemos as molduras penais dos crimes relevantes. No caso do crime de ofensa à integridade física simples, a moldura penal vai até três anos (art. 143º CP); se for ofensa à integridade física grave será de dois a dez anos (art. 144º CP). Já no caso do crime de injúria, a pena não poderá ir além de três meses (art.181º CP), com a possibilidade de a pena ser agravada, em certos casos, em mais metade (art. 184º CP).
Creio que estes exemplos mostram, de forma clara, aquilo que afirmámos: existe uma censura muito maior relativamente à violência física, quando comparada com a violência verbal. Isso não levantaria qualquer problema se houvesse um elemento que justificasse esta diferença no tratamento das duas formas de violência: poderia haver uma maior censura no que toca à violência física, se esta causasse mais danos que a verbal. Porém, como vimos, não é assim. Cumpre, então, avançar as três razões pelas quais acredito que existe esta diferença entre a maneira como são vistas a violência física e a verbal.
Em primeiro lugar, parece-me que, muitas vezes, se invoca a liberdade de expressão, de forma abusiva, para justificar situações de violência verbal. Naturalmente, a liberdade de expressão permite uma interferência muito maior do que o princípio geral de liberdade (e concretamente, a liberdade de movimento), no que toca à esfera do outro: o princípio geral de liberdade não justifica a lesão da integridade física de outrem, mas o exercício da liberdade de expressão pode justificar a lesão do direito ao bom nome. Porém, parece-me que a liberdade de expressão não pode justificar situações de agressão verbal, sobretudo quando não esteja em causa um interesse político-social (e.g. a crítica de uma figura pública que está a desempenhar insuficientemente as suas funções).
Naturalmente, a liberdade de expressão permite uma interferência muito maior do que o princípio geral de liberdade (e concretamente, a liberdade de movimento), no que toca à esfera do outro: o princípio geral de liberdade não justifica a lesão da integridade física de outrem, mas o exercício da liberdade de expressão pode justificar a lesão do direito ao bom nome.
Em segundo lugar, a violência verbal é um fenómeno mais difícil de identificar do que a violência física. Por um lado, é uma agressão que não deixa marcas físicas, como hematomas ou feridas. Por outro lado, trata-se de uma forma de violência que tem uma vertente subjetiva maior, uma vez que depende, em larga medida, da maneira como as palavras proferidas pelo adulto são recebidas pela criança ou jovem. Isso variará em função de fatores como as características da criança, as vivências que teve e a resiliência que desenvolveu até ao momento da agressão.
Por último, o impacto da violência verbal é desconsiderado face ao impacto da violência física. Aqui, também, essa desconsideração parece ser consequência dos dois aspetos que já foram referidos: o impacto é menos visível e mais subjetivo, na violência verbal. Acresce, porém, um outro elemento: a reticência que houve sempre – e que persiste – em dar a devida importância à dimensão psicológica e ao impacto na saúde mental, por causa de estigmas e ideias erradas, ainda que amplamente difundidas (e.g. a baixa autoestima é uma escolha, basta escolher acreditar em si próprio para ter autoestima).
Acresce, porém, um outro elemento: a reticência que houve sempre – e que persiste – em dar a devida importância à dimensão psicológica e ao impacto na saúde mental, por causa de estigmas e ideias erradas, ainda que amplamente difundidas (e.g. a baixa autoestima é uma escolha, basta escolher acreditar em si próprio para ter autoestima).
Fica, então, claro que os motivos por detrás da distinção entre a violência física e a verbal não são justificativos da visão social que pressupõe que a primeira é mais nociva que a segunda. Porém, o conhecimento destes motivos permite agir sobre os mesmos, de forma a contrariar esta visão.
Uma mudança deste paradigma social só parece possível se for acompanhada de uma mudança de mentalidade. Urge reconhecer os efeitos sérios que a violência verbal pode ter, sobretudo nos mais vulneráveis, como as crianças e jovens. Esse reconhecimento aliado a uma visão de cuidado integral que, hoje, se preconiza, devem levar a sociedade – e por arrasto, o direito – a recusar a violência verbal e a sua banalização, nos termos em que existe hoje.
Concretamente, existem formações associadas à parentalidade ou ao cuidado nas relações, em geral, que incutem uma mudança de mentalidade. A parentalidade positiva, mais do que uma moda ou tema que permite aos influencers criar conteúdos, assenta na eliminação da violência no exercício da parentalidade e tem sido útil na mudança de paradigma. O tema do Cuidado integral tem sido desenvolvido por sistemas de safeguarding, nomeadamente no contexto da Igreja, que tendem a iniciar a sua implementação nas relações entre adultos e crianças, rapidamente passando o seu foco também para as relações entre adultos.
O caminho é longo e não é totalmente claro, mas deixemo-nos tocar pelas conclusões de estudos como o que se referiu para sermos agentes de mudança e garantes do cuidado nas relações, lutando para eliminar todas as formas de violência.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.