A fragmentação do ser e a criação artística

Ao fragmentar suas personagens e narrativas, ela desafia a noção de que o artista é uma figura central, revelando a criação artística como uma interação constante entre o individual e o colectivo, entre a liberdade e a conformidade.

Parade (a ser publicado pela Relógio d’Água em Novembro) está dividido em quatro capítulos, que correspondem a quatro histórias – “The Stuntman,” “The Midwife,” “The Diver” e “The Spy”.  Cada um destes capítulos é centrado numa personagem diferente, todas designadas por “G”. As personagens são maioritariamente artistas, e há temas comuns em cada história como a identidade, a arte – a conformidade, a visibilidade e a propriedade –, o casamento, a maternidade, a vida doméstica, o amor e a morte. Todas estas histórias, apesar de distintas, são unidas por um fio comum: a desconstrução da identidade e a exploração das motivações por trás da criação artística. Rachel Cusk desafia o leitor a considerar a arte não apenas enquanto forma de expressão, mas também como um reflexo das complexas relações humanas e das estruturas de poder que nos cercam. Através de personagens que procuram desesperadamente escapar das amarras da subjectividade e da identidade imposta, a obra revela como a arte pode ser tanto uma forma de libertação quanto uma prisão.

O romance não segue uma narrativa linear. A estrutura é fragmentada, refletindo a complexidade das questões abordadas. A narração oscila entre o “eu” e o “nós”, sugerindo o carácter colectivo da criação e da apreciação da arte. Deste modo, de forma meticulosa, questiona a noção de que a obra artística deve ser associada a uma única pessoa, e desafia o leitor a pensar na criação como um produto da experiência e da história compartilhadas, sendo levantada por Cusk, como uma das questões principais do livro, da seguinte forma: “Why did work have to be identified with a person, when it was just as much the product of shared experience and history?” (Parade, p. 166)

A desconstrução desta ideia de que a criação artística é uma atividade puramente individual, surge também quando Cusk examina, também, o papel da arte nas diversas relações descritas. As mulheres das histórias são artistas ou casadas com artistas, e Cusk explora as pressões impostas pela maternidade e as dinâmicas familiares. Ao fragmentar suas personagens e narrativas, ela desafia a noção de que o artista é uma figura central, revelando a criação artística como uma interação constante entre o individual e o colectivo, entre a liberdade e a conformidade.

À sua maneira, Parade é como uma obra de arte, podendo ser comparada a um quadro do movimento cubista. À primeira vista, o romance parece desconexo, com partes isoladas que não se encaixam, mas, conforme a leitura avança, essas peças unem-se numa obra que questiona o lugar da arte, a importância que lhe damos e o que ela pode roubar ao artista. O caos e a ambiguidade são elementos centrais na estética de Cusk, que rejeita a ideia de que a arte deve organizar a confusão da vida. Em vez disso, Cusk aprofunda esse caos, expondo as tensões que permeiam a criação artística e as relações humanas. No final, Parade revela-se não apenas como uma obra literária, mas como uma reflexão filosófica sobre a arte e a vida numa obra que, tal como a arte moderna, permanece sempre aberta à interpretação e à introspecção.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.