A feliz religião do ego

Um olhar sobre uma das “doenças” da nossa vida em comum a partir da mais particular das circunstâncias.

Escrever sobre egoísmo é como cuspir para o ar. É inevitável que muito do que diga se aplique à minha pessoa com tanta ou mais propriedade que a outros. Consciente disto, assumo o risco com temor e tremor e passo a descrever aquilo que foi a quase anedótica experiência de ter sido um assíduo visitante da biblioteca do campus principal da Universidade de Notre Dame, em South Bend, Indiana, EUA. O ponto de partida não podia ser mais particular e temo que o leitor já esteja a torcer o nariz à ideia de perder mais três minutos a ler o artigo. Muito do que descrevo é, contudo e infelizmente, facilmente universalizável e, se as minhas “vítimas” (que foram os meus “carrascos” ao longo deste ano) são estudantes numa universidade americana no meio deste enorme continente, o “estilo” está bem implementado em todas as carreiras e estratos, e não é mais típico daqui que de Faro, Dornes ou Braga. Sem mais demoras:

1. Vir, não ver (nem ouvir) e aborrecer.             

Tudo começa à chegada. Imagine-se uma sala enorme, com imensas mesas e cadeiras, à volta de estantes com livros. Estamos vinte ou trinta sentados, a ler ou a escrever, conscientes uns dos outros e do silêncio. É o décimo andar da biblioteca e chega-se de elevador. Sempre com os benditos auriculares de última geração nos ouvidos, sai do elevador e entra na sala o fulano ou a sicrana em animadíssima conversa telefónica. Termina a conversa imediatamente? Fica no hall de entrada a sussurrar as despedidas? “Esconde-se” no vão da escada para continuar a falar? Em 93% dos casos (para não dizer sempre!), segue calmamente para o lugar que ainda não elegeu, deambulando entre as mesas e as estantes, continuando a comentar o preço das calças que comprou anteontem ou a noitada do último sábado diante da muda audiência de quem teve o azar de chegar uns minutos ou umas horas antes. Numa atitude que me mereceu mais (má!) fama que proveito, lá me levantava eu do meu lugar a pedir se podia ou terminar a conversa ou ir falar para outro lado. O olhar era quase sempre de espanto, não raras vezes precedido por um “espera um bocado, está aqui alguém a falar comigo” para o microfone dos auriculares. Sim, realmente, devia ter pedido desculpa por interromper a conversa… Confesso que, as primeiras vezes, tentei levar a coisa (e outras parecidas, como chegarem aos pares à conversa com a mesma animação e bonomia) com um certo desportivismo. Mas, é difícil não ceder à irritação quando acontece dia sim, dia sim, e furar a “bolha do ensimesmamento” traz pouco ou nenhum exame de consciência. Talvez esta feliz cegueira só aconteça aqui; talvez o leitor a reconheça ou se reconheça, como também me reconheço, noutros lugares e latitudes.

 

2. O contexto sou eu (ou, em francês: le contexte c’est moi!

Não menos frequente é o que, em bom português, se poderia chamar a completa desfaçatez. Já chegou ou já chegaram ao espaço da biblioteca onde outros trinta “mouros” estão a ver se acabam de escrever um paper ou de ler as últimas 100 páginas para o seminário dessa tarde. Ao contrário dos primeiros, viram e reconheceram os próximos que ali estão em silêncio. Mas, numa cena digna dos apanhados, sentam-se numa mesa a conversar sobre o dia de ontem ou a discutir o professor X, Y ou Z. Os mais conscientes, ou serão os menos atrevidos?, falam em voz mais baixa, como se ter uma pessoa a sussurrar a trinta centímetros de mim durante vinte ou trinta minutos fosse muito melhor que um indivíduo com um megafone a anunciar preços baixos a trinta metros de distância. Há uma parte de mim que fica verdadeiramente “de boca aberta”. Não se trata, como no primeiro caso, de distração crónica (chamemos-lhe assim, em nome da caridade). Quem assim procede “leu a sala”, por assim dizer, mas sente que não há motivos para contrariar a sua mais espontânea vontade e forçar os outros a adaptarem-se. O que me espanta é a “coragem” envolvida neste gesto, que, à sua escala, é o “grito de Ipiranga” contra a mais básica das normas sociais: o respeito pelo (espaço dos) outro(s).

 

3. As regras são um obstáculo à expressão do espírito  

A estas alturas, o leitor talvez se pergunte se o cronista não estará equivocado: será que estes comportamentos não estão sancionados pelas regras? A biblioteca é mesmo um espaço onde se deve estar em silêncio? Ainda que a pergunta me tenha parecido sempre de resposta óbvia, fui verificar e, surpresa!!!, nos andares da biblioteca reservados ao estudo e à investigação, a regra é o silêncio. Ou seja, há uma regra, há regras. Porém, neste ponto, é preciso reconhecer que um ego emancipado não se rege por normas que não serão senão uma infeliz concessão à débil inteligência da multidão. Conto só dois casos que me fizeram levantar os olhos do ecrã e acreditar, por breves segundos, que estava a ter uma visão. O primeiro foi uma estudante que entrou na sala, sentou-se a dois metros de mim e, volvidos quatro minutos, iniciou uma videochamada. Há um espaço reservado para isto na biblioteca (uma sala insonorizada), mas quem me impede de ser feliz onde quero e como quero? O segundo é o caso de um estudante que chegou ao mesmo fatídico décimo andar e decidiu almoçar. A biblioteca autoriza que se coma um pequeno snack e que se beba água ou café, mas pede encarecidamente que não se faça da biblioteca uma sala de jantar e, sobretudo, que não se consuma comida cujos cheiros possam incomodar os outros visitantes. Ora, ao nosso felizardo apeteceu-lhe chicken nugetts para o repasto e ali se sentou com o seu pitéu, enquanto a sala da biblioteca se transformava, pouco a pouco, num McDonalds ou Burger King. Dir-me-ão: ignoram as regras. Talvez, mas a natureza da ignorância é uma espantosa mistura de falta de informação, falta de noção e falta de respeito. Isto talvez porque: a quem é que ocorreria ler a regras do espaço onde vou entrar ou que vou utilizar antes de começar a agir a meu belo prazer? Sou, porventura, “escravo da lei” (imagino São Paulo a dar voltas no túmulo)? É difícil argumentar contra libertários, sejam os convictos, sejam os anónimos…

 

4. O mundo é a nossa casa

Chego ao último apartado e peço emprestada uma expressão ao Padre Jerónimo Nadal, um dos primeiros jesuítas, para caracterizar uma recente conquista do “porreirismo”, que pude observar de perto aqui, em Notre Dame, mas que desconfio que muitos reconhecerão no seu local de trabalho ou de estudo. Refiro-me à tentativa, tantas vezes sancionada por quem tem responsabilidades, de transformar o público em privado e dar asas à universalização do “estás à vontade” (normalmente interpretado como “estás à vontadinha”). O slogan libertador é “a universidade (ou a biblioteca, o local de trabalho) é a tua casa”. Ora, no meio onde me movo, a situação chega ao paroxismo durante os exames finais (os finals), duas vezes por ano, duas semanas de cada vez. Honrando o bem-aventurado refrão, a biblioteca transforma-se numa comuna estudantil. Sob o olhar complacente dos bibliotecários, chegam os sacos-de-cama, as almofadas, as geleiras com comida, as garrafas de refrigerantes, etc., trazidos por estudantes em pijama que decidiram “acampar” nos andares da biblioteca durante uma semana ou duas, porque “oh, my God, the finals!”. Não pretendo com isto nem minimizar a ansiedade, nem desprezar o sacrifício destes valentes “undergrads”, mas os dormitórios são, literalmente!!!, a menos de cinco minutos a pé. Apetece exclamar (com o sotaque apropriado…): “Não havia necessidade!”. Claro que, nestes dias, subir ao décimo andar da biblioteca é preparar-se para um espetáculo entre o cómico e o trágico: estudantes a dormir nos corredores entre as mesas e as estantes às onze da manhã, manchas de comida (ketchup? molho barbecue?) nas mesas, videochamadas em roda livre, filas de gente ensonada à porta da casa-de-banho com a escova dos dentes na mão. Tudo isto obedece, e não é sensato negá-lo, a uma certa lógica grupal que é própria da idade e das circunstâncias, mas a confusão entre a mesa do trabalho e o sofá de minha casa é celebrada como uma conquista por uma cultura para quem distinguir é pecado capital. E quem autoriza não é menos “culpado” que quem pratica. Sei que este é um assunto delicado que há uns anos custou a um reitor de universidade portuguesa uns dias de insultos e polémica (ver aqui), mas tenho dificuldade em perceber o que se ganha com este “derrube das paredes” entre espaços sociais diferentes: entre a universidade e a praia ou o restaurante, ou entre o local de trabalho e o sala de estar do apartamento onde vivo. Poder cheirar o chulé do próximo numa aula ou ouvi-lo ressonar na biblioteca é um avanço civilizacional? Não será ainda outra cedência, mais ou menos inocente, ao que mais (me) convém?

Caro leitor, não quero que fique com a impressão que a universidade de Notre Dame é a selva ou que os estudantes desta prestigiada instituição acabaram de sair das cavernas. Foram eles o objeto do meu estudo “antropológico” de pacotilha, mas o que verdadeiramente interessa, e me preocupa, é a complacência com que aceitamos o egoísmo próprio e alheio, como se a única alternativa a um conformismo social doentio fosse um não menos problemático “salve-se quem puder”. Os exemplos e a tipologia são necessariamente particulares, mas temo que não constituam uma exceção. São apenas mais uma metamorfose de uma religião tão antiga como a história: a “religião do ego”, que suavemente se infiltra em nós e nos nossos hábitos, transformando-se no credo mudo da interação social. Ser-nos-á ainda permitido apostatar?

Fotografia de Robert Bye – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.