A escusa

A escusa não parece poder ser separada do simples facto de muitos, muitos médicos já terem feito bem mais do que 1000 horas extra do que as tais 150 horas pedidas pelo MS neste 2023. Leu bem: mais de 1000.

Segundo dados do relatório da UE “Estado da Saúde na UE, Portugal, Perfil de saúde do país 2021”, as despesas de saúde do PIB – 9.5% – situam-se, desde há anos, abaixo da média da UE – 9.9%. Em 2019 a despesa de saúde per capita foi 2314€ (ajustados em função da diferença no poder de compra), menos 1/3 do que a média da UE (3521€). Em 2020 a descida acentuada do PIB decorrente da pandemia (COVID-19) fez-se acompanhar de um aumento de 6% (800 milhões de euros) da despesa pública prevista no Orçamento de Estado para a Saúde de 2019.

Dependendo do Ministério da Saúde (MS), o Serviço Nacional de Saúde (SNS) é um sistema universal financiado por impostos aplicáveis a todos os residentes em Portugal. Coexiste com outros subsistemas de saúde enquanto regimes especiais de seguro de saúde (de determinadas profissões ou setores, como os funcionários públicos ou o setor bancário) e os regimes privados de Seguro Voluntário de Saúde (SVS).

Em 2020 o plano de investimento plurianual pretendia a construção de novos hospitais do SNS e a melhoria de instalações e equipamentos já existentes. Era necessária maior autonomia das entidades do SNS [para recrutar 8400 profissionais de saúde em 2020 e 2021].

Pretendia-se também reforçar a gestão do desempenho do SNS, destinando 100 milhões de euros para a gestão intermédia dos seus hospitais [com a celebração de contratos internos ligados a incentivos de desempenho].

Considerando 2019 Portugal tinha, face a outros países da UE, muito mais médicos, mas menos enfermeiros (7.1 por 1000 habitantes; 8.4 por 1000 na UE). Este número tem aumentado desde 2000, atingindo 5.3 médicos/ 1000 habitantes. Mas dados de outros países permitem perceber que este número é sobrestimado, atendendo aos médicos realmente aptos a exercer.

Considerando 2019 Portugal tinha, face a outros países da UE, muito mais médicos, mas menos enfermeiros (7.1 por 1000 habitantes; 8.4 por 1000 na UE). Este número tem aumentado desde 2000, atingindo 5.3 médicos/ 1000 habitantes. Mas dados de outros países permitem perceber que este número é sobrestimado, atendendo aos médicos realmente aptos a exercer.

No Observador lê-se que se reformaram 1229 médicos em 2020 e 2021. Segundo o Público, foram 652 em 2020 e 577 em 2021. Significa um aumento médio respetivamente de 37% e 30% face a 2019. Nesse ano tinham-se reformado 409 médicos.

O número de vagas em Medicina em 2023 aumentou, havendo mais 7 do que em 2022 (1541).

O presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) manifestou-se contra tal aumento, pois “(…) diminuirá a humanização da medicina”.

Opiniões diversas – são ou não necessárias mais vagas? Há ou não falta de médicos? São ou não bem pagos? Números. Análises. Atribuição de culpas. Bodes expiatórios. Alterações ao longo de décadas aliadas às cores políticas de quem ocupa as pastas ministeriais e cargos de responsabilidade nem sempre inseparáveis de tais cores.

Vivi e interiorizei em casa algo que hoje caiu em desuso e tende a desaparecer. Trata-se do que deveria pautar a decisão de alguém integrar a área da saúde. Ser médico, enfermeiro, implicava vocação, do latim vocare, chamar. É a inclinação ou tendência que leva um indivíduo a exercer determinada carreira ou profissão.

Será que hoje o que se pede, e espera, da prática da Medicina esvazia sentido ao Juramento a Hipócrates lido no final da formação? Será que a qualidade do atendimento corre o risco de escorrer na proporção inversa à quantidade de pessoas a ver e de gráficos a preencher? E assim a humanização do acto médico?

Medicina como fábrica de sapatos ou linha de montagem. Medicina gestão. Desde a década de 90 do séc. XX muitos médicos passam a ter de exercer em jeito defensivo. O médico sabedor e experiente via-se, não raro, na contingência de pedir exames complementares de diagnóstico  (gulosos do orçamento à Saúde), não fosse posteriormente acusado de negligência [por não corroborar um diagnóstico que, em consulta, já tinha sido óbvio].

Multipliquemos isto por tantos exames de tantas Especialidades e desenha-se um quadro de gastos avultado, mas essencial à proteção do clínico.

Por volta de 1990, alunos nos Estágios práticos dos cursos de Medicina viam médicos de 50 anos exaustos, descrentes das políticas, exigências e requisitos de burocracias várias que lhes tiravam tempo e energia para o propósito que os tinha chamado à profissão – as pessoas doentes. 50 anos e já desistentes inaptos em esconder a sua desilusão aos mais novos! E continua e agravou-se. E quem pode voa para outras paisagens e melhores condições.

Medicina de exaustão. De saturação. Do sistema, perplexa ante o desrespeito. Chegavam a irromper pelo gabinete pessoas das salas de espera, agredindo fisicamente o clínico. E continua.  E agravou-se.

O que é novo, agora, e ao contrário do que aconteceu nas décadas anteriores e até 2020, pela primeira vez no SNS, os médicos fazem algo que os distinguia dos enfermeiros, outro grupo bem  estafado: unem-se.

O que é novo, agora, e ao contrário do que aconteceu nas décadas anteriores e até 2020, pela primeira vez no SNS, os médicos fazem algo que os distinguia dos enfermeiros, outro grupo bem  estafado: unem-se.

O amor à camisola irá desaparecer. E se este amor e boa vontade salvou e salva tantas vidas…

A negociação entre Médicos e Governo poderá continuar longa e difícil, pois há já muitas décadas de amargura e desilusão debaixo da ponte. Seguramente quatro décadas, se não mais.

A escusa não parece poder ser separada do simples facto de muitos, muitos médicos já terem feito bem mais do que 1000 horas extra do que as tais 150 horas pedidas pelo MS neste 2023. Leu bem: mais de 1000. E sim, foi também a forma de muitos dos médicos terem mais dinheiro ao fim do mês, pois de outro modo, e como muitos outros profissionais em Portugal, sem isso o dinheiro podia não chegar. Mas até isso optam por dispensar.

1000 horas significa trabalhar sete dias por semana. Regredir? É que não são seis, e posteriormente cinco úteis aprovados, após o reconhecimento da Sociedade, em Lei.

Os alunos do Internato [da especialidade] fazem muitas mais horas do que as que era suposto (e justo?) fazer. Não pagas. Fazem Urgências, na esmagadora maioria das vezes, sem a retaguarda de um clínico mais experiente, que os oriente e apoie.

A multidão que reconheceu e aplaudiu os médicos pelo enorme esforço realizado durante o combate à Pandemia por SARS Covid 19 em 2020 é a mesma que agora os condena como inflexíveis e sem coração porque até ganham demais e/ou pela teimosia na escusa.

Há, assim, muitos prejuízos a vários níveis, desde logo a pessoa doente que não pode recorrer a um SVS e pode estar a viver uma situação verdadeiramente aflitiva, de vida ou morte. Mas a descrença, exaustão e burnout de muitos clínicos no SNS – e são muitos nesta situação – deveria  também (pre)ocupar, e muito seriamente, toda a Sociedade.

 

Bibliografia:

“Estado da Saúde na UE, Portugal, Perfil de saúde do país 2021”

Observador (23.01.2022)

Público (27.12.2022)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.