A forma como um país ou uma cultura trata os mais vulneráveis, diz muito do seu desenvolvimento. Esta ideia, já expressa de formas diversas e atribuída a outros tantos autores, diz muito sobre a forma de pensar o Estado e a Sociedade, mas também a hierarquia de valores subjacentes à ação individual e coletiva. Numa altura em que termina mais um ano escolar, outro particularmente afetado pelos efeitos da pandemia COVID-19, poderíamos refletir sobre diversos grupos e pontos de vista. De acordo com estatísticas oficiais, relativas a 2017/2018, existem cerca de 90.000 crianças com necessidades especiais no sistema educativo, um número que tem vindo a crescer nos últimos anos e que carece de respostas ajustadas e adequadas às suas especificidades. A partir da investigação, orientada para uma educação inclusiva, seria importante refletir sobre o seu lugar na Escola, como um todo, e como a sua concretização pode ser ou tornar-se um indicador de qualidade do sistema educativo.
Desde a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, em 1986, que se assume, no seu artigo 1, nº 2: “O sistema educativo é o conjunto de meios pelo qual se concretiza o direito à educação, que se exprime pela garantia de uma permanente ação formativa orientada para favorecer o desenvolvimento global da personalidade, o progresso social e a democratização da sociedade”. Não só se sublinha a educação como um direito como, também, o sistema deve ser organizado de modo a promover o desenvolvimento de todos, nas suas diferentes dimensões. E muito tem sido feito nas últimas décadas para promover a inclusão e participação social de crianças e adolescentes com necessidades especiais. Desde a definição de recursos e medidas para a integração destas crianças e jovens nas escolas regulares, em 1991, a uma atenção mais particular à sua funcionalidade, capacidades e saúde, em 2008, até uma visão não categorial, que sublinha o potencial de aprendizagem de todos, com os recursos e o apoio adequado, em 2018, a legislação em feito os seus progressos. Apesar do investimento ou insuficiência de meios, da oferta formativa ou dos seus limites, às práticas mais ou menos adequadas às características de todos os alunos, percebe-se o fio condutor que valeu uma atenção do Global Education Monitoring Report 2020 da UNESCO dedicado à inclusão e avaliação – All Means All. Mas, se no plano dos princípios, podemos estar de acordo, em termos concretos, importa avaliar os progressos, mas também o que merece atenção e precisa ser revisto.
E os estudos têm mostrado o papel da experiência e em particular da formação especializada nas atitudes e em particular no sentido de eficácia para as práticas inclusivas.
A investigação tem contribuído para uma visão mais clara. Por um lado, é consensual a sobrecarga dos pais, com reflexos na sua qualidade de vida. Embora existam muitos casos em que o nascimento de uma criança com necessidades especiais leve os pais a repensar os seus projetos de vida e os faça crescer pessoal e espiritualmente, a investigação mostra que, para a maioria das famílias, há uma necessidade de maiores recursos e tempo para acompanhar o desenvolvimento da criança. Em muitos casos, implica que um dos elementos, muitas vezes a mãe, deixe o seu emprego para que esse acompanhamento seja possível. No contexto escolar, os professores têm um papel central. Na Direção, na definição de políticas e recursos locais; e nas salas de aula, os professores do ensino regular e do ensino especial têm um papel determinante na interpretação da legislação, na mobilização dos recursos e da sua formação específica, e que necessita ser contínua, para acompanhamento adequado e individualizado. E os estudos têm mostrado o papel da experiência e em particular da formação especializada nas atitudes e em particular no sentido de eficácia para as práticas inclusivas. Embora tenha existido um investimento na contratação de psicólogos para as escolas, são poucos, muitas vezes com contratos precários e sem uma visão de continuidade do acompanhamento e muita dificuldade em responder a todas as solicitações. Também a sua formação específica tem um claro impacto na avaliação e na intervenção. Num contexto específico como o educacional, uma formação em Psicologia da Educação permite um olhar diferenciado sobre o contexto e uma intervenção mais ajustada às suas características e intervenientes. Outros técnicos, que tendo sido alvo de menos investigação, têm um papel decisivo, nomeadamente ao nível da terapia da fala, da terapia ocupacional, da psicomotricidade, etc.
Mas não podemos esquecer que a inclusão ocorre, também, na e para a participação social, o envolvimento e a interação entre pares. As crianças e adolescentes são, muitas vezes, exemplares na forma como (re)conhecem as diferenças e acolhem no grupo. E alguns estudos, com análises das interações entre colegas de turma, mostram como crianças com necessidades especiais podem assumir um papel central na turma, ao contrário de uma visão excludente ou periférica. Em grande medida, a explicação reside numa visão sistémica, no conhecimento, nas atitudes e nas práticas dos seus pais e dos professores ou educadores, incluindo os auxiliares de ação educativa. E muita investigação mostra que práticas educativas adequadas, ou específicas, para crianças com perturbação de hiperatividade têm benefícios para estes mas também, e muitas vezes mais, para os restantes colegas da turma. O mesmo poderia ser indicado em situações de dislexia, problemas de comportamento, entre muitos outros. A experiência inclusiva constitui uma oportunidade de desenvolvimento pessoal e social para todas as crianças. E as crianças são, muitas vezes as primeiras a perceber os ganhos com a interação com o outro, mesmo o que seja diferente de si, a envolver-se em atividades e rotinas que promovem o desenvolvimento do outro, mas também de si mesmas.
Independentemente das nossas diferenças. Importa encontrar instrumentos concretos para conhecer melhor esta realidade, para além dos números, e concretizar medidas que respondam (mesmo) a todos.
Se a pandemia veio sublinhar as desigualdades já existentes entre os países, e nos países, importa que retiremos deste evento lições adequadas, tendo em vista o maior cuidado da casa comum e dos outros. Para nos desenvolvermos, a cada dia, mais homens e mulheres para os outros como, em boa hora, o Papa Francisco nos recordou na sua carta encíclica Fratelli Tutti. Num tempo em que, para a nossa saúde, é importante a distância física, não podia ser mais apropriado recordar que os direitos humanos não são tão iguais para todos, que urge cultivar e nutrir esta consciência do bem comum a que todos pertencemos como irmãos. Independentemente das nossas diferenças. Importa encontrar instrumentos concretos para conhecer melhor esta realidade, para além dos números, e concretizar medidas que respondam (mesmo) a todos. Para além das notas dos exames, que outros critérios, como a inclusão, o envolvimento ou participação possam ser tidos em conta quando se avalia a qualidade do sistema de ensino. E para isso, há muito a fazer.
Fotografia de Dragos Gontariu – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.