No passado dia 27 de agosto, o mundo financeiro aguardava com expectativa o que diria o presidente da Reserva Federal (Fed), Jerome Powell, sobre uma possível retirada de estímulos monetários à economia dos Estados Unidos. Há meses que decorria um debate sobre essa retirada.
Argumentando com um certo regresso da inflação, que importaria combater, analistas mais conservadores consideravam ser altura de a Fed, o banco central americano, cessar aqueles estímulos, nomeadamente a compra de títulos de dívida e subir juros. Pelo contrário, havia quem defendesse ser prematura uma retirada dos estímulos monetários à economia.
J. Powell falou e comunicou que, ainda este ano, a Fed iria travar, mas não eliminar, a compra de títulos de dívida. Quanto a subir juros, deu a entender que será uma medida para mais tarde.
O que aqui gostaria de salientar não envolve uma apreciação sobre o maior ou menor acerto da posição de J. Powell, mas o facto de a Fed ter total autonomia para decidir sobre esta matéria sensível. O mesmo acontece, hoje, com a maioria dos bancos centrais em países desenvolvidos. Há décadas atrás uma decisão destas seria tomada pelos governos. O mandato de J. Powell termina em fevereiro próximo; provavelmente será reconduzido pelo Presidente Biden para exercer um segundo mandato. Até lá, porém, Powell decide como bem entender.
As principais funções de um banco central, além de regularem e supervisionarem o setor bancário, consistem em emitirem moeda, concretizando a política monetária nomeadamente através de mexidas nos juros a pagar aos bancos que nele depositam dinheiro.
Independência dos reguladores
Os bancos são hoje regulados e supervisionados por bancos centrais, entidades relativamente recentes. O banco central americano, a Reserva Federal (Fed) surgiu apenas em 1913. O banco central mais antigo apareceu em 1694, como banco privado que tinha o monopólio da emissão de moeda na região de Londres.
As principais funções de um banco central, além de regularem e supervisionarem o setor bancário, consistem em emitirem moeda, concretizando a política monetária nomeadamente através de mexidas nos juros a pagar aos bancos que nele depositam dinheiro. Mais recentemente, os bancos centrais como a Fed ou o Banco Central Europeu, lançaram mão de medidas menos convencionais, como a compra de títulos de dívida no mercado, para combaterem o risco de deflação, uma descida generalizada dos preços que ameaçaria o crescimento económico.
Durante décadas os bancos centrais, bancos do Estado, obedeceram às instruções dos ministros das Finanças do respetivo país. Hoje, porém, no mundo desenvolvido a maior parte dos bancos centrais é independente das ordens governamentais.
Também as outras entidades reguladoras são, ou devem ser, independentes do poder político, bem como os tribunais. Mas a independência dos bancos centrais envolve também uma importante política económica e financeira, a política monetária, que assim sai da alçada dos governos.
Em Portugal foi alvo de críticas a passagem de Mário Centeno de ministro das Finanças para governador do Banco de Portugal, bem como a designação de Ana Paula Vitorino, militante e deputada socialista, ex-ministra do Mar e casada com o ministro da Administração Interna, para encabeçar a Autoridade de Mobilidade e Transportes. As críticas, num caso como no outro, baseavam-se na necessidade de independência em relação ao poder político por parte dos titulares de órgãos reguladores.
Ou seja, no caso dos bancos centrais os governos abdicam da sua soberania monetária. É um autolimite à democracia, uma vez que os governantes são políticos eleitos e os governadores dos bancos centrais, embora nomeados pelo poder político, não obedecem a esse poder. Muitos deles nem legalmente podem ser demitidos pelos governos antes do fim dos seus mandatos, salvo em graves e excecionais circunstâncias. Tudo isto por decisão… dos políticos.
o caso dos bancos centrais os governos abdicam da sua soberania monetária. É um autolimite à democracia, uma vez que os governantes são políticos eleitos e os governadores dos bancos centrais, embora nomeados pelo poder político, não obedecem a esse poder.
A tentação dos governos
Há quem não concorde com a independência dos bancos centrais, considerando-a não democrática. De facto, assim é, mas foram os próprios políticos democráticos que entenderam ser melhor para a saúde da economia não ficarem sujeitos à tentação de executarem uma política monetária laxista (juros demasiado baixos, sobretudo) para conquistarem votos. Vejamos alguns exemplos, que foram casos reais.
O primeiro ocorreu recentemente na Turquia, país onde o banco central não é independente do governo. O presidente Erdogan demitiu três governadores do banco central turco em menos de dois anos. E no fim de maio demitiu um vice-governador do banco central. Isto porque Erdogan queria taxas de juros baixas e esses governadores não as desceram, até as subiram, pois a inflação na Turquia tinha subido e já ultrapassara os 15% ao ano.
As consequências da última demissão do governador do banco central foram devastadoras. A moeda turca desvalorizou fortemente, a bolsa entrou em queda e os capitais fugiram da Turquia.
O caso exemplar de Paul Volcker
Vejamos, agora, o exemplo inverso, que é mais antigo, e se passou nos EUA no princípio da década de 80 do século XX. A inflação estava em alta, prejudicando a economia americana. Paul Volcker, então presidente da Reserva Federal (Fed), o banco central americano, resolveu combater a sério o surto inflacionista, subindo a taxa diretora da Fed, que chegou a atingir os 20%.
Levantaram-se furiosos protestos contra esta política monetária, da parte de políticos, empresários, gestores e sindicatos. O desemprego nos EUA subiu de 6% da população ativa para 11%. Mas P. Volcker não cedeu. A alta dos preços passou de 12% em 1981 para apenas 2% em 1986. E a Fed, com a inflação a baixar, pôde também ir baixando gradualmente os juros. Paul Volcker, que morreu em 2019, tornou-se uma personalidade altamente respeitada e ouvida nos círculos financeiros americanos. Fez o que provavelmente nenhum político teria a coragem de fazer.
Um outro acontecimento significativo passou-se no Reino Unido. O banco central britânico, o Banco de Inglaterra, tradicionalmente dependia do ministério das Finanças. Até que, depois de os trabalhistas ganharem as eleições em maio de 1997, o novo primeiro-ministro, Tony Blair, e o seu ministro das Finanças, Gordon Brown, logo no início do mandato tomaram a iniciativa de dar ao seu banco central independência na condução da política monetária. Situação que se mantém. E nenhum político trabalhista ou conservador atual quer regressar ao passado.
Esta situação em que a democracia de certo modo se auto limita acontece com outros reguladores, que na sua atuação devem ser independentes do poder político, como acima referido. É uma limitação responsável exigida pelo bom senso.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.