A Democracia e a Educação

Entendendo a democracia como a proposta de uma forma outra de convivência, ela só é efetiva se acontecer em todos os setores/relações e se for algo vivido e experienciado no dia-a-dia das pessoas.

Estamos em tempo de eleições para o Parlamento Europeu e uma das questões que aparece claramente em cima da mesa é o previsível crescimento de forças políticas que advogam uma visão e ação autoritária baseada numa lógica de supremacia (seja ela pela via territorial, étnica e/ou social) de uns sobre outros. Em vários países esse crescimento – e, em alguns casos, até domínio – já não é uma mera hipótese, mas uma realidade. Acendem-se as luzes amarelas e vermelhas e fala-se das ameaças à democracia que daí advêm e das nuvens negras que um crescimento dessas forças políticas trará a uma Europa cuja história não nos deixa tranquilos quando de violência e conflito falamos (apesar de desde há muito se advogar como a mais civilizada das civilizações… mas isso seria outro artigo).

Na minha opinião, a grande maioria destas análises e respetivos debates – ainda que pertinentes e relevantes – centram-se apenas nos sintomas e esquecem a doença, o profundo da questão: em sociedades onde a construção de relações democráticas aos mais variados níveis não é regra, as instituições democráticas serão sempre frágeis e estarão ameaçadas, não só de forma direta (acabando-se com elas), mas acima de tudo de forma indireta (manipulando-as em sentidos não democráticos).

Procurando-me explicar um pouco melhor. Todas as relações humanas são relações de poder – não há forma de ser diferente. E todos e todas temos algum tipo de poder – algumas muito mais, outras mais, outras menos, outras muito menos. Assim sendo, a meu ver apresentam-se-nos duas questões centrais, dois verdadeiros campos de batalha pelos quais vale a pena lutar e ir entregando a vida. Uma é sempre urgente; a outra é fundamental.

A batalha sempre urgente é a do equilíbrio desse poder, procurando que quem pouco o tem possa ter mais e, muitas vezes, lutando para retirar poder a quem muito o tem. A batalha fundamental é a da democratização da forma como o poder é exercido. No primeiro campo de batalha, posicionamo-nos claramente num dos lados – o dos que menos têm – contra o outro – os que mais têm. No segundo, posicionamo-nos do lado da dignidade humana e da justiça, reconhecendo que todos e todas, sem exceção, nos nossos espaços de poder somos protagonistas e podemos, pela forma como exercemos esse poder, dignificar ou rebaixar, libertar ou oprimir.

A grande maioria destas análises e respetivos debates – ainda que pertinentes e relevantes – centram-se apenas nos sintomas e esquecem a doença, o profundo da questão: em sociedades onde a construção de relações democráticas aos mais variados níveis não é regra, as instituições democráticas serão sempre frágeis e estarão ameaçadas.

Entendendo assim a democracia como a proposta de uma forma outra de convivência, só efetiva se acontecer em todos os setores/relações (económicas, políticas, sociais, educativas, culturais, etc.), se for algo vivido e experienciado no dia-a-dia das pessoas. Uma democracia restrita às formas/instituições democráticas será sempre uma democracia de papel, que facilmente se desvirtua, rasga e desfaz. Quando uma sociedade quase só fala e se preocupa com a democracia quando há eleições ou quando ganham espaço determinadas fações políticas com discursos mais perturbadores e ameaçadores, isso demonstra que a sua democracia está doente, vista pela maioria da população como algo longínquo e da responsabilidade de um pequeno grupo cada vez mais desacreditado – é verdade que tem ainda alguma capacidade de reação, mas ainda assim, claramente doente.

Sejamos claros: para a construção de uma verdadeira sociedade democrática precisamos de tecer relações democráticas e democratizadoras. Se assim for, as instituições democráticas serão a expressão dessas relações e, como tal, serão fortes, robustas e resilientes, não abanando a qualquer instabilidade, crise ou campanha de propaganda enganosa e manipuladora.

Nesta batalha, a educação (usando a expressão no seu sentido lato e aplicável a todos e todas que, de alguma forma, nos vemos em papéis de educadores/as e/ou aprendentes) desempenha um papel fundamental. Quando propomos formas outras de relação, é imperativo trabalhá-las ao nível da aprendizagem. É quase insano pensar-se que se propõe algo de novo e que ela terá a adesão automática e inata dos outros – por melhor que seja essa proposta.

A construção de relações democráticas aprende-se: lê-se, escuta-se, observa-se, experimenta-se, apreende-se, questiona-se, debate-se, rebate-se, renova-se. Parece quase básico, mas a verdade é que na maioria das vezes salta-se este passo fundamental. Democracia parece ser só assembleias, votos, argumentos, contra-argumentos e campanhas. E tudo o resto? A relação com os que me são mais próximos? A relação com os vizinhos? As relações de trabalho? As relações nos ambientes educativos e de aprendizagem? As relações, as relações, as relações… Quem tem que tipo de poder? Como o usa? Como o uso eu? De forma democrática, solidária, aproximando e gerando capacidades de convivência e de construção de novas possibilidades? Ou de forma autoritária, vertical, impositiva, fechando e afastando?…

Os processos de aprendizagem em que estamos envolvidos contribuem para reforçar os elementos autoritários, limitadores e opressores ou os elementos construtores de relações humanas democráticas, dialógicas e libertadoras? Eis a batalha.

 

Este artigo foi inspirado na intervenção do educador popular e sociólogo Oscar Jara Holliday no II Encontro da Comunidade Sinergias ED, realizado a 7 de fevereiro de 2019 na FLUP, disponível aqui.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.